O que é Educação antirracista?
Prática ajuda na valorização da trajetória dos diferentes povos que formam o país e colabora no combate ao preconceito
A lei 10.639/03 e, posteriormente, a lei 11.645 pautaram o que muitos livros didáticos deixavam de fora nas escolas: a história da África, dos africanos e indígenas, a luta dos negros e dos povos originários no Brasil, as culturas e o papel desses povos na formação da sociedade nacional, mostrando que é necessário trabalhar uma Educação Antirracista ao longo de todo o ano letivo e não apenas em datas como Consciência Negra e Dia dos Povos Indígenas.
“A escola é um dos piores lugares para a criança negra: quando ela começa a aprender sobre história, descobre que os negros chegaram ao Brasil como seres infelizes, cativos, que vieram para servir aos brancos”, diz a professora Sherol dos Santos, professora de História da rede estadual do Rio Grande do Sul e doutoranda na mesma disciplina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Para Sherol, a Educação antirracista ajuda na valorização da identidade e da trajetória dos diferentes povos que formam um país, em vez de tomar a visão do colonizador como a dominante. Além disso, a prática auxilia no sentimento de pertencimento dos negros no espaço escolar e acadêmico. “É uma valorização da diversidade, daquilo que distingue os grupos raciais, mas não os hierarquiza”, diz Sherol.
“Uma Educação Antirracista é aquela que entende que vivemos em uma sociedade racista, em que as relações entre as pessoas são pautadas também a partir do lugar social e racial que elas ocupam, e se preocupa em preparar indivíduos que possam se colocar contra esse sistema, gerador de maior desigualdade”. De acordo com ela, isso requer a adoção de currículo decolonial, mas não só. É preciso mudar discursos, raciocínios, lógicas, posturas e os modos de tratar as pessoas negras.
É importante nesse sentido que os professores trabalhem questões raciais, culturais e de representatividade, além de abordar a diversidade como um valor para toda a comunidade escolar. “É preciso que a pauta antirracista faça parte do projeto político pedagógico (PPP) da escola e, assim, esteja naturalmente atrelada a todas as disciplinas”, diz Heloise Costa, professora de Língua Portuguesa de formação, mestre em Relações Étnico-Raciais e atualmente coordenadora do Projeto Entrelivros, de incentivo à leitura.
As contribuições africanas e indígenas que são apagadas
Segundo Mônica do Amaral, que coordenou a pesquisa O ancestral e o contemporâneo nas escolas: reconhecimento e afirmação de histórias e culturas afro-brasileiras, é dever da escola trazer aos alunos a história como ela é. “É preciso que o professor seja formado com esse olhar crítico para enfrentar o racismo velado”. Autora do livro O que o rap diz e a escola contradiz: um estudo sobre a arte de rua e a formação da juventude na periferia de São Paulo, Mônica diz que é fundamental que os educadores conheçam as comunidades que atendem e tragam a sua cultura para dentro do espaço escolar. “É preciso valorizar culturas que no passado foram perseguidas, como a capoeira e o hip hop, recuperar os ritmos”, diz ela. “Isso vai oxigenar a escola e torná-la verdadeiramente brasileira – e não americana ou europeia”.
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Para Jussara de Araújo Gonçalves, professora do Programa de Pós-graduação em Ensino em Contexto Indígena Intercultural e diretora da Agência de Inovação da Universidade do Estado do Mato Grosso, as etnociências são conhecimentos valiosos, mas nem sempre reconhecidos. “Os indígenas trabalham muito a oralidade, e percebemos que parte desse conhecimento tem se perdido. [No contexto] da globalização, esse contato com outras culturas pode fazer com que muitos acreditem que a cultura deles é inferior, o que não é verdade. Por isso, trabalhamos para valorizar esse conhecimento enquanto Ciência.”
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Caminhos para uma educação decolonial
Para dar uma nova perspectiva para o papel dos negros na formação da sociedade e do conhecimento científico, os educadores podem abordar as hierarquias raciais a partir dos próprios componentes curriculares. “A origem da Matemática é vinculada aos gregos, mas no século VI antes de Cristo, se os egípcios, no norte da África, já usavam cálculos para construir pirâmides 3 mil anos antes da era cristã”, aponta Sherol como exemplo. Da mesma forma, foram os egípcios um dos primeiros povos a adotar um calendário de doze meses e a estudar Astronomia. É no Mali, ainda, que se encontra uma das bibliotecas mais antigas do mundo, na cidade de Timbuktu, antigo entreposto comercial e cultural africano e tombado como patrimônio da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Nos seus manuscritos de 1200 anos, estão estudos sobre, por exemplo, medicina, alquimia e astrologia. “Apesar disso, a Educação coloca a história negra no gueto não científico”, diz Sherol.
O trabalho com contos africanos e indígenas também pode ser uma alternativa. Além de possibilitar a leitura, a interpretação textual e a escrita, essas narrativas mostram a importância e o valor da contribuição dos diferentes povos para a cultura brasileira. Veja nesta reportagem sugestões para abordar o gênero conto e as relações étnico-raciais. Outra possibilidade é apresentar às turmas a obra de escritoras negras para apoiar o debate dessas temáticas, valorizar a atuação de mulheres negras na sociedade, além de promover diversidade nas aulas.
Em História, os alunos não conhecem a real dimensão do Quilombo dos Palmares, que ocupava uma área próxima ao tamanho de Portugal, por exemplo. “Aprende-se pouco sobre Zumbi e Dandara, que governaram este quilombo”, aponta Heloise. Além disso, outras figuras importantes da história da resistência negra no país também são invisibilizadas pela escola. “Como Francisco José do Nascimento, o ‘Dragão do Mar’, que ajudou o Ceará a se tornar o primeiro estado do país a abolir a escravidão, em 1884; e Tereza de Benguela, que governava o Quilombo do Piolho, no Mato Grosso, por meio de um sistema de parlamento”. E o mais importante é que este tema não fique restrito à comemoração da Consciência Negra, em novembro. Educação antirracista é para estar no PPP da escola e ser praticada diariamente.
*Conteúdo publicado originalmente em 25/10/2020 e atualizado em 03/10/2023 para acréscimo de informações
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