Entrevista

Marcelo Rito: “É possível reconhecer uma escola Waldorf em qualquer lugar do mundo”

Especialista explica a história e comenta mitos sobre a pedagogia criada por Rudolf Steiner

Marcelo Rito é coordenador do curso de Pedagogia da Faculdade Rudolf Steiner, em São Paulo. Foto: Divulgação/Acervo Pessoal

Nem alternativo nem tradicional. O que é, de fato, o ensino praticado nas escolas Waldorf e por que essa pedagogia, criada pelo austríado Rudolf Steiner, é considerada “diferente”? 

Marcelo Rito é a pessoa certa para responder a essa pergunta. Mestre em Psicologia da Educação e doutor em Didática, Teorias de Ensino e Práticas Escolares pela Universidade de São Paulo, Marcelo tem larga experiência como pesquisador nesta área. Formado em história, é autor de livros didáticos, artigos acadêmicos e condutor de grupos de pesquisa. Desde 2019, atua como coordenador do curso de graduação em Pedagogia da Faculdade Rudolf Steiner, de São Paulo (SP). 

A convite de NOVA ESCOLA, o especialista compartilha parte do conhecimento que acumulou ao longo de quase 30 anos de trabalho na Educação básica. 

NOVA ESCOLA: O que é o ensino Waldorf? Por que essa pedagogia é diferente da chamada "tradicional"?

MARCELO RITO: “Pedagogia tradicional” é um termo que, desde a década de 1930, é contestado. A pedagogia Waldorf insere-se na corrente das pedagogias modernas e é possível encontrar um diálogo com a pedagogia ativa, com a libertária e com a pedagogia crítica.

Ou seja, assim como essas pedagogias, a Waldorf também opõe-se ao tecnicismo, ao ensino mnemônico (por memorização), ao ensino conteudista e, por fim, à ideia de que existe um centro da cultura localizado nos países ocidentais. 

No entanto, ainda alinhada às pedagogias modernas, a Waldorf tem um olhar atento ao desenvolvimento do aluno, que é uma de suas bases, igualmente às pedagogias com base científica. 

O que podemos perceber de diferença entre a Waldorf e a tradicional é que a primeira teve inspiração clara e definida a partir do pensamento de Rudolf Steiner (1861-1925), pensador que formulou sua filosofia a partir do final do século 19 e que logo depois, no contexto da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), direcionou suas reflexões à vida social e, nesse contexto, criou uma pedagogia. 

Podemos dizer que a diferença entre a pedagogia Waldorf e as outras é de que há uma coerência interna inspirada por essa teoria. É possível reconhecer uma escola Waldorf em qualquer lugar do mundo porque existem práticas centenárias a partir das quais os professores organizam seu trabalho. É óbvio, contudo, que as escolas de hoje não são parecidas com as de cem anos atrás, mas essa coerência filosófica, teórica e de cosmovisão, permite que essas escolas sejam reconhecidas e, algumas vezes, consideradas “escolas alternativas”. Mas não seria coerente, do ponto de vista da Antroposofia, que essas escolas estivessem fechadas às influências externas.

O ensino Waldorf tem alguma coisa a ver com religião?

A concepção de Rudolf Steiner sobre religião está no campo do autoconhecimento. Religiosidade, para ele, é a convicção de que, na individualidade de cada Ser, é possível acessar a essência do próprio humano. Essa essência, do ponto de vista da Antroposofia, por sua vez, está no campo da coprodução do mundo. Ou seja, cada indivíduo tem potencial para se relacionar com o mundo na esfera da criação dos seus próprios caminhos interpretativos. Assim, o conhecimento desenvolve-se, não no sentido acumulativo e progressivo que as simplificações do pensamento kantiano (relacionado ao filósofo alemão Immanuel Kant - 1724-1804) talvez tenham trazido, mas no sentido do encontro com a própria essência do humano. A questão da religiosidade entra nessa dimensão.

De alguma maneira, a pedagogia Waldorf e sua inspiração filosófica está no campo da crítica que o Iluminismo (movimento cultural desenvolvido nos séculos 17 e 18) fez à formalidade religiosa. No entanto, a pedagogia Waldorf acredita que, diferentemente do Iluminismo, em que a ideia de liberdade é relacionada a pensar por si, a dimensão religiosa permite que o Ser olhe para o profundo da sua existência e encontre lá algo que transcende a própria materialidade das suas percepções e sentimentos. A pedagogia Waldorf tem um olhar para a religião como instância da espiritualidade e não necessariamente para a religião como prática de ações de crenças e valores morais. 

Como é o currículo em uma escola Waldorf?

Uma frase compartilhada por aqueles que estudam essa pedagogia é que o  currículo Waldorf é produzido a partir de um olhar profundo para o desenvolvimento do aluno. Nesse sentido, o professor assume uma postura de permanentemente criar desafios, motivações para que os alunos produzam reações ou ações criativas diante do procedimento escolar apresentado. Portanto, não há um currículo já traçado, de antemão aprovado ou reprovado. Mas, evidentemente, uma pedagogia centenária como essa consolidou algumas práticas que, de geração a geração de professores, são consideradas no momento em que vão aplicar. 

É possível, de novo, reconhecer uma escola Waldorf em qualquer lugar do mundo porque há algumas ações práticas que são comuns, mas isso não está no centro e, muitas vezes, nem é desejável que seja assim. O currículo tem de ser resultado de um adulto portador de um conhecimento cultural, que acessou o legado cultural da comunidade em que estão ele, os alunos e suas famílias. 

Há algum tempo estamos avaliando a possibilidade adaptações e diálogos entre o currículo Waldorf e a Base Nacional Comum Curricular [BNCC] e é absolutamente possível, não existem grandes diferenças. 

Qual o papel do professor nesse modelo de ensino?

A posição do professor na pedagogia Waldorf está diretamente ligada ao currículo. O professor é um observador atento e creio que essa seja a primeira qualidade que um educador Waldorf deve ter: ser ativo na construção do currículo conforme a necessidade da cultura que se apresenta a ele. Uma coisa importante que não distingue a pedagogia Waldorf, mas é uma marca profunda, é o reconhecimento de que o professor é um adulto diante da relação com os alunos. Toda a sua formação vai na direção de um autoconhecimento para encontrar seu posicionamento no mundo, na cultura, na comunidade, na sociedade, para que ele perceba o tamanho da responsabilidade que tem ante esses seres em desenvolvimento. E, com isso, se torne um exemplo a ser imitado pelas crianças pequenas. Depois, no Fundamental 1 e 2, quando os alunos se relacionam mais com a ideia de um adulto com autoridade e, depois no Ensino Médio, seja aquele personagem que vai ajudar os estudantes a desenvolverem um amor fraterno à humanidade.

Essas três dimensões do professor nas três etapas de desenvolvimento dos alunos são apenas alguns exemplos de que a pedagogia Waldorf não considera o professor um facilitador ou um tutor. O ato educativo, segundo o ensino Waldorf, é um ato de encontro de um adulto com as crianças mais velhas e com as mais novas. 

Há mitos em relação à pedagogia Waldorf? 

O primeiro mito é o de que a escola Waldorf não aprova alunos no vestibular. Isso cai por terra diante da comparação com escolas que também não têm foco no conteudismo. Mas, por outro lado, se um aluno se engaja em um processo educativo que trabalha a criatividade, que o vê como sujeito na produção do conhecimento, ele se encanta pela cultura. E, ao se encantar pela cultura, se torna alguém estudioso. Produzindo um aluno estudioso, cria-se uma pessoa capaz de responder a qualquer pergunta em qualquer teste. Não teria sentido se as escolas Waldorf prometessem às famílias aprovação no vestibular porque isso seria treiná-los para realizar uma prova. Por outro lado, é possível que se comprometa a levar o jovem a se realizar não só o vestibular, também na vida acadêmica, educacional, ou profissional que, por ventura, queira. 

Outro mito é o de que as escolas Waldorf estão no interior de certa bolha, que se configura por práticas próximas a seitas. Diante de tudo que foi dito até agora, nada mais incoerente do que essa afirmação. É possível, sim, pensar que  as práticas centenárias dessa pedagogia, de alguma maneira, cristalizam algumas ações. Isso não é desejável, mas é claro que existe em qualquer comunidade pedagógica. Nada menos coerente com os princípios da pedagogia Waldorf ela se fechar em si própria, mas pode vir a acontecer com qualquer posicionamento ou ação educativa que busque uma coerência interna. 

É um mito também a ideia de que não há comprovação científica das ações pedagógicas Waldorf. Exemplo disso é que, aqui no Brasil, passamos por um processo de credenciamento de uma faculdade de pedagogia no Ministério da Educação e obtivemos nota 5 junto ao MEC no nosso projeto pedagógico. 


O que todo mundo precisa saber sobre Antroposofia?

  1. É uma filosofia profundamente humanista, no sentido de que assume o humano como ser ativo na produção do seu próprio mundo. 

  2. É socialmente progressista. A realidade existente se completa, segundo os princípios de Rudolf Steiner, na capacidade humana de produzir representações a respeito dela. Essas representações não apontam conceitos e ideias que estariam fora do campo da cognição humana, mas seriam exatamente a expressão desse campo. É uma visão progressista no sentido de compreender que as relações sociais são, necessariamente, transformáveis. 

  3. Aproxima arte e ciência. A partir da inspiração que Steiner tem nos escritos científicos de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), na cosmovisão e também no modo que o filósofo alemão produz ciência, é que acontece o encontro da arte com a ciência. “A ciência seria o teorema, e a arte, o problema.” Essa frase de Goethe nos mostra que o que o artista produz são imagens a respeito do mundo e o que o cientista produz são ideias. As ideias produzidas no campo científico estão na direção da tentativa de reconhecer leis da natureza e produzir um discurso que aponte à essência dos fenômenos com os quais o cientista se depara. Goethe diz que o artista faz a mesma coisa quando cria uma imagem, quando materializa seu olhar individual sobre algum fenômeno. Portanto, a dimensão artística é, também, uma dimensão científica. Ou seja, os dois estão no campo da criação de explicações, de imagens. No currículo Waldorf, a arte não entra meramente como um elemento que fará com que os alunos tenham um momento de relaxamento para depois absorver mais conhecimento. A arte entra no âmbito do desenvolvimento pessoal e de reconhecimento da própria individualidade. Encontrar dentro de si um artista capaz de produzir algo que não estava no mundo antes, e que expresse a mais profunda individualidade, é um ato artístico e também um ato de desenvolver a própria confiança. Talvez esteja aí o núcleo da inspiração antroposófica no campo da pedagogia.

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