Para repensar a escola

Matemática: como manter as meninas interessadas no Fundamental 2?

Combater os estereótipos de gênero que ainda cercam a aprendizagem e dar voz às meninas, valorizando seu raciocínio, é a saída para mantê-las engajadas

Ilustração abstrata de eixos cartesianos
Ilustração: Nathalia Takeyama/NOVA ESCOLA

Manter o foco, o interesse e a vontade de aprender Matemática é um desafio importante para os professores do Ensino Fundamental 2. No caso das meninas, por conta da desigualdade de gênero na área, a experiência dos professores aponta para um maior desinteresse à medida que elas evoluem na vida escolar, embora não existam dados ou informações da ciência que justifiquem o estereótipo de que eles são naturalmente mais aptos a aprender o componente curricular do que as meninas.

Se no Fundamental 1 a maioria das alunas mostra-se interessada e envolvida com os números, elas se afastam desse mundo ao longo do Fundamental 2, numa escalada de desinteresse que as leva a serem minoria nas carreiras ligadas às ciências exatas. Os estereótipos de gênero, presentes desde a infância, explicam parte desse afastamento, mas o que a escola pode fazer para manter o interesse das meninas pela Matemática?

Com a ajuda de especialistas e professores, organizamos 14 dicas para ajudar os professores de Matemática do Fundamental 2 a incentivarem o interesse das meninas pela disciplina e ajudarem a desconstruir os estereótipos que, ainda, as afastam das ciências exatas. 

Por que muitas meninas se afastam da Matemática ao longo da vida? 

É sabido que a Matemática é ponto delicado na Educação Básica. Pesquisa realizada pelo QEdu e pelo Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (Iede), com base nos dados do Sistema de Avaliação do Ensino Básico (Saeb) de 2019, mostra que 95% dos estudantes terminam a escola pública no Brasil sem o conhecimento esperado na disciplina. 

Christina Brech, professora no Departamento de Matemática da USP, afirma em seu artigo “O 'Dilema Tostines' das mulheres na Matemáticaque os papéis impostos pela sociedade, as diferentes expectativas das famílias com relação aos meninos e às meninas e uma Educação Básica com viés de gênero estão entre as causas para as mulheres serem minoria na Matemática.

“Isso parece grave, não apenas pelo número em si, mas também, pelo fato de que esses mesmos fatores podem estar afastando da área meninas com potencial matemático, desperdiçando talentos”, afirma a pesquisadora. Uma comunidade predominantemente masculina naturaliza comportamentos ditos “masculinos”, sejam eles machistas ou não, resultando no chamado “viés de gênero inconsciente”: o cotidiano nos transmite subliminarmente, tanto a homens quanto a mulheres, a ideia de que a Matemática é um espaço masculino, completa Christina.  

As marcações de gênero, no entanto, não surgem na vida escolar, elas começam ainda na primeira infância, reforçando comportamentos que lá na frente têm consequências diferentes para meninos e meninas. 

Maitê Salinas, educadora, pesquisadora e formadora de professores, observa que enquanto é comum que meninos brinquem com peças de montar, bilhar, ferramentas e brinquedos de empilhar, coisas que demandam estratégias e estimulam a lógica e a visão espacial, o mesmo não é comum nos brinquedos direcionados às meninas, que acabam por não ser estimuladas da mesma forma. “Elas têm estímulos maiores nas áreas de linguagem e afetividade”, reforça Maitê. 

“Os estudos de gênero já denunciam essa situação há mais de uma década”, reforçam Marina França, coordenadora do Programa Mentalidades Matemáticas, e Márcia Santos, formadora de Projetos Educacionais e professora de Matemática do Colégio Sidarta. Enquanto os corredores “para os meninos” geralmente são compostos de brinquedos que estimulam o pensamento matemático, os corredores “para meninas” estão repletos de brinquedos voltados  ao cuidado. “Isso mostra que no imaginário comum social há o mito de que meninas e mulheres são naturalmente inaptas para as áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática”, explicam as educadoras.

Estereótipos, ausência de exemplos e medo de errar atrapalham 

Outro ponto que difere meninos e meninas é o medo de errar. Na infância, quando ainda se cobram menos, o desenvolvimento é semelhante. “Nesta fase, as crianças têm menos crenças limitantes e isso está relacionado com o medo de julgamento”, explica Maitê. Conforme crescem, esse medo de errar tem um custo mais alto para as meninas. “Isso engessa alguns padrões de comportamento. Mas o errar é positivo. É quando erramos, e reconhecemos o erro, que nos desenvolvemos. Na Matemática isso é fundamental para qualquer descoberta”, pontua. 

Ou seja, um processo que se inicia na infância é reforçado sistematicamente ao longo do desenvolvimento das meninas e desemboca em um número expressivamente menor de mulheres nas ciências exatas. Trata-se de um ciclo que se retroalimenta, com o afastamento das meninas da Matemática ainda na escola e sua baixa presença na docência no futuro. Portanto, para rompê-lo, o primeiro passo é os educadores terem consciência dessas diferenças. 

Se os professores generalistas do Fundamental 1 são majoritariamente mulheres, mas no Fundamental 2 isso muda, com a presença de professores homens, especialmente na Matemática. “Os professores precisam ajudar a quebrar os estereótipos de gênero para compensar as crenças limitantes das meninas. Valorizar modos diferentes de encontrar uma solução é fundalmental”, afirma Maitê. 

A professora Marília Prado, que leciona Matemática no Ensino Médio na rede particular de São Paulo e já atuou no Fundamental 2, observa na prática o que Maitê afirma. No início de cada ano ela questiona os alunos sobre a relação que têm com a Matemática. Enquanto os meninos se mostram confiantes, afirmando que tiram boas notas mesmo quando não gostam da disciplina, as meninas dizem sentir a necessidade de se esforçarem mais para terem um bom desempenho, além de mostrarem mais insegurança ao afirmarem se gostam ou não de Matemática. “Ao longo do ano, porém, é possível ver que as meninas, em geral, têm desempenho melhor que o dos meninos. Elas são inseguras, mas vão muito bem”, destaca a professora. 

Mas é fato que desinteresse e desestímulo se convertem em números. Na Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (Obmep) de 2018, por exemplo, apenas 30% dos medalhistas no Ensino Fundamental eram do sexo feminino, e a proporção ficou ainda menor, na casa dos 20% entre os participantes do Ensino Médio. Para alterar essa realidade, Marina e Márcia defendem a abordagem de Jo Boaler, pesquisadora de Stanford, de que todo mundo é capaz de aprender matemática em altos níveis. “Quando demonstramos genuinamente que acreditamos no potencial de todas as crianças, as ajudamos a criar o sentimento de que são potentes”, concluem.

Na prática: 14 dicas para apoiar as meninas nas aulas de Matemática 

A partir da conversa com as especialistas ouvidas para esta reportagem, NOVA ESCOLA elaborou esta lista com 14 dicas para ajudar os professores de Matemática do Fundamental 2 a incentivarem o interesse das meninas pela disciplina e ajudar a desconstruir os estereótipos que, ainda, as afastam das ciências exatas. 

1. Ao iniciar o período letivo, converse com os alunos e pergunte qual a relação deles com a Matemática. Quando se mostrarem pouco entusiasmados ou inseguros, estimule-os a falarem sobre as dificuldades e experiências passadas. 

2. Tanto nessa conversa inicial quanto no decorrer das aulas dê espaço para as meninas participarem das aulas. Se um menino e uma menina querem falar, por que não dar a palavra primeiro a ela? Se há muitos meninos participando, busque uma menina para falar também. É importante que elas mostrem que também sabem e ganhem confiança com isso. 

3. Apresente mulheres matemáticas e cientistas, inclua esse conteúdo em suas aulas. Muitas vezes, é possível propor um diálogo entre o que determina o currículo com a história e descobertas destas mulheres. A representatividade é muito importante e faz com que as meninas vejam que elas também podem. É preciso que as meninas vejam exemplos de mulheres bem-sucedidas na Ciência, como Ada Lovelace, Maryam Mirzakhani, Katherine Johnson, Hedy Lamarr, Dorothy Vaughan, Margaret Hamilton e Mary Jackson.

4. Construa uma nova concepção do que é “ser bom” em matemática. A matemática está conectada com a vida. Por isso, não faz sentido incentivarmos a ideia de que “ser bom” em matemática se resume à memorização, uso de procedimentos e apenas chegar à resposta certa.

5. Tome cuidado com as mensagens sutis, e muitas vezes danosas. Valorizar o primeiro que levanta a mão pode inibir os demais, por exemplo. Nunca fale que determinada atividade é para os meninos ou para as meninas, todos devem ser estimulados a participar e produzir da mesma forma. 

6. Estimule o trabalho em grupo. Ao contrário da comum crença de que a matemática é uma ciência individual, a natureza desta ciência é social. Por isso é importante estimular o trabalho colaborativo e por meio de interação entre as e os estudantes que se aprende mais, pois é a partir da interação é possível pensar profundamente sobre a matemática.

7. Nas atividades em grupo, estimule que a sala se divida de forma mista, evitando os grupos só de meninas e só de meninos. 

8. Mostre confiança nas meninas na mesma proporção que mostra aos meninos. Olhe para cada “arriscar” com generosidade e valorização, observando com cuidado as reflexões que elas trazem que, muitas vezes, não são ditas por medo de julgamento. Abra a oportunidade para que elas falem sobrem suas estratégias de raciocínio.

9. Opte por uma sala de aula cada vez mais equitativa, com atividades colaborativas em que todos tenham oportunidade de se colocar, participar e contribuir, criando espaço para ampliar a capacidade de análise, a formulação de hipóteses e a argumentação cuidadosa. Assim, todos os alunos poderão representar de diferentes maneiras, organizar o pensamento, e então, mostrar, através de experiências, o papel da Matemática no mundo. Não foque em procedimentos, e sim, em uma matemática significativa. Desenvolver a atividade de forma coletiva, cooperativa e construtiva, percebendo que as ideias se completam. 

10. Procure criar memórias positivas das experiências na matemática. Crie um ambiente seguro de aprendizagem, trazendo emoção a partir de uma aprendizagem significativa. Valorize o erro e o esforço delas como parte do processo de desenvolvimento. 

11. Incentivar os estudantes a pensarem profundamente sobre a matemática. Quando resumimos a matemática a chegar à resposta certa apenas, estamos esvaziando-a de sentido.

12. Traga sempre uma reflexão, responda com perguntas. E esteja sempre atento para quando surgir qualquer questão que envolva estereótipos de gênero, trazendo qualidade das interações.

13. Em geral as meninas são muito cuidadosas com registro em aula e com as representações. O uso de cores como ferramenta, por exemplo. Estimule diferentes formas de representações com significado dentro da matemática, isso pode auxiliá-las a se engajarem. 

14. Ofereça conteúdos de alto nível para toda a turma, pois todos são capazes de aprender. Portanto, é importante que eles possam se desenvolver de maneira completa.

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