Entrevista

“Ela ser mais inteligente a exclui”, diz Katemari Rosa sobre meninas nas exatas

Para apoiar a entrada e permanência das meninas negras nas exatas é preciso estudar as opressões, inclusive as de gênero, discuti-las e tentar se desfazer dos próprios preconceitos na hora de ensinar

Ilustração de professora e alunas conversando.
Ilustração: Nathalia Takeyama/NOVA ESCOLA

Se há inegáveis desafios para romper estereótipos de gênero e manter o interesse das meninas pela Matemática, a questão ganha complexidade quando eles se somam ao racismo. 

Maioria nas escolas públicas, meninas não brancas são afetadas pela falta de confiança que atinge a maioria das garotas quando o assunto são as ciências exatas, mas sofrem de maneira particular com a forma como o racismo estrutural afeta a autoestima. 

Katemari Rosa é professora de Física da Universidade Federal da Bahia (UFBA), mestra em Ensino, Filosofia e História das Ciências pela mesma universidade e mestra em Science Education pelo Teachers College e doutora em Science Education pela Columbia University. E trabalha pela inserção de mais homens e mulheres negros nas ciências exatas. 

Katemari reafirma que a construção dos papéis de gênero começa em casa, mas a escola pode ter papel relevante em, além de não reforçar esses papéis, trabalhar por sua desconstrução. “A gente faz o que sabe fazer, no contexto da aula, mas a partir de um novo olhar. Os professores têm de ter essa mudança interna: como é que eu estou sendo um instrumento de opressão dentro da sala de aula?”, provoca. 

Quando há a interseção entre raça e gênero, Katemari acredita ser fundamental ampliar os conteúdos das aulas para além do determinado pelo olhar eurocêntrico que domina o conhecimento. 

“Ter aulas que mostrem a genialidade de povos negros é algo que ajuda, sim, a mudar o entendimento de cada pessoa. Ensina o aluno a ver de forma diferente, a pensar no seu próprio povo de forma diferente. E em relação às pessoas brancas, faz com que elas comecem um processo de ver as pessoas negras de formas diferentes.”

Confira abaixo os principais trechos da entrevista que a professora Katemari Rosa concedeu a NOVA ESCOLA. 

NOVA ESCOLA: Pesquisas apontam que no Fundamental 1 as meninas tiram boas notas e são interessadas em Matemática. Mas, em geral, afastam-se desses conteúdos ao longo da vida escolar. Na sua opinião, por que isso acontece? 

KATEMARI ROSA: A resposta clara e objetiva é o patriarcado [sistema atualmente vigente, em que os homens, de forma geral, detêm mais poder político, cultural e simbólico do que as mulheres]

As meninas vão aprendendo cada vez mais, no processo de escolarização, o lugar delas determinado pela sociedade enquanto mulheres e meninas. A questão do cuidado é fortemente trabalhada pela família, pela mídia, e vemos isso em todas as nossas interações sociais. Todas. É esse sistema que está em tudo. 

A gente não resolve isso falando que o problema é só de formação docente,  porque professoras e professores replicam as práticas sexistas que estão presentes na nossa sociedade.

A gente começa a compreender, enquanto meninas, que se você é boa em determinada coisa você se torna uma menina mais atraente. O papel da menina é ser atraente para os meninos, o que é muito reforçado na puberdade, época do Fundamental 2. Então, ela ser mais inteligente, ser melhor naquilo que é do universo masculino, a exclui.

Tem outro ponto que é o conceito de autoeficácia, que envolve o que a gente acha que é capaz de fazer. É muito menos em relação ao que se pode fazer, mas ao quanto você acha que pode. Os meninos costumam ter maior autoeficácia em Matemática e Ciências. Isso também é parte do processo social que diz que os meninos são bons em lógica, em engenharia, em coisas consideradas mais avançadas. 

A própria ideia de que a Matemática é uma coisa que seria de alguém mais inteligente é um pensamento que não corresponde à realidade, não existe isso de que essa forma de pensar é mais sofisticada. E elas vão crescendo e essas questões continuam afetando as meninas, que não vão procurar as ciências exatas, pois são áreas que não foram pensadas para elas, não são entendidas como sendo para elas. 

A gente sabe que essa construção começa em casa. Mas quando elas chegam à escola, quais são as estratégias que os professores de Matemática podem adotar para manter o interesse das meninas e para que eles mesmos evitem os estereótipos de gênero na hora de ensinar?

O principal é a tomada de consciência: os professores precisam assumir que têm visões que estabelecem os papéis de gênero. Todos têm e os professores também, a gente não está isolado na sociedade, a gente reproduz essas coisas. É tomar consciência do ponto de vista individual e tentar diminuir os preconceitos  que temos em relação aos próprios estudos de gênero. Não vejo outra saída senão buscar estudar mais sobre as questões de gênero. Eu acredito muito em autonomia docente e entendo que essa é uma mudança que vem de dentro, o indivíduo tem de entender o que são essas questões e refletir sobre sua prática. 

São as professoras e os professores que entendem o contexto da sua sala de aula, entendem estratégias de ensino e podem ter as melhores intenções em algumas estratégias, mas acabam reproduzindo o que se dá na sociedade como um todo. A gente tem de tentar ir no âmago dessas questões de opressão. E eu não vejo outra forma senão estudar essas opressões, discutindo sobre isso e tentando se desfazer dos preconceitos que a gente traz. A gente não precisa ter coisas supermirabolantes. A gente faz o que a gente sabe fazer, no contexto da aula, mas a partir de um novo olhar. Os professores têm de ter essa mudança interna: como estou sendo um instrumento de opressão dentro da sala de aula?

Quando os estereótipos de raça se somam aos de gênero, temos um quadro ainda mais desafiador. Como os educadores podem agir para estimular o interesse das meninas negras pela matemática? 

A resposta vai no mesmo sentido. Existe a necessidade de um reconhecimento do racismo no Brasil. A gente tem de reconhecer que este é um país racista e que as nossas instituições são racistas. Quando a gente fala em racismo estrutural, é reconhecer isso. 

Mesmo que eu não seja uma pessoa racista, quando eu estou em uma sala de aula, em um bairro de classe média, e eu vejo que tem uma maioria de estudantes não negros, esse é um espaço que é racista quando estamos em um país com maioria de pessoas negras. 

Admitir que isso é um reflexo do racismo é muito importante. Dizer “aqui a gente não barra ninguém” é desconsiderar que não se trata de ação individual, mas dos mecanismos de acesso. 

Como eu posso mudar com o que tenho em mãos? Se eu dou aula em uma escola com 99% de estudantes brancos de classe média, eu tenho o compromisso com uma educação que seja antirracista, o compromisso de trazer para a sala de aula uma reflexão sobre os conteúdos que estou ensinando, problematizar os conteúdos dentro de uma perspectiva antirracista. 

Os conteúdos que a gente tem em sala de aula vêm de uma matriz europeia colonizadora e fazem com que a gente também acabe pensando dessa forma. A gente acaba pensando que o conhecimento científico é a única forma de conhecimento possível. Isso vem da colonização europeia, de achar que tudo que é europeu é mais inteligente, é mais bonito. Mesmo quando a gente está educando a elite é preciso fazer essa reflexão. 

E, pensando na educação básica e na matemática, é pensar em quais conhecimentos eu levo para a sala de aula. Por que eu não levo conhecimentos de povos originários? Por que eu não trago conhecimentos dos povos africanos? É impossível a gente pensar que não tenha havido produção de conhecimento desde o surgimento da humanidade até a colonização europeia. 

Quando a gente olha para a ciência, o tipo de conhecimento que era produzido pelos egípcios, por exemplo, um povo africano, a tecnologia, as formas de raciocínio, conhecer essas matemáticas, no plural. O que a gente aprende na escola é a matemática grega, como se não houvesse uma matemática anterior, como se não houvessem as matemáticas africanas. Quando a gente olha para a lógica binária, por exemplo, é um pensamento que está presente na matemática africana, da Etiópia, a linguagem usada na computação. Quanto a gente não perde enquanto humanidade ao desconhecer o mundo apagando toda a história de produção intelectual de pessoas negras? Trazer as produções intelectuais de pessoas negras, tanto do presente quanto do passado, contribui também com aquela coisa da autoeficácia, da gente achar que pode. Isso faz com que os alunos vejam que é possível. Porque o racismo faz isso com as pessoas negras, faz com que as pessoas negras se achem menores, afeta a constituição psicológica. Ter aulas que mostrem a genialidade de povos negros é algo que ajuda, sim, a mudar o entendimento de cada pessoa. Ensina cada um a se ver de forma diferente, a pensar no seu próprio povo de forma diferente. E em relação às pessoas brancas, faz com que elas comecem um processo de ver as pessoas negras de formas diferentes. 

Eu imagino que esse tipo de ação de desconstruir a ideia de que o conhecimento é apenas eurocêntrico se torna ainda mais fundamental em uma sala de aula com maioria negra.

Com certeza. Eu acho que é em todas as salas de aula. A nossa realidade é a escola pública e na escola pública brasileira a maioria das estudantes é de meninas. Os nossos meninos negros não estão na sala de aula porque estão sendo mortos. Tem menos meninos que meninas na educação pública. Então é importantíssimo. Tem um fator da autoestima, da autoeficácia, mas eu acho que também tem um fator que é a educação como um direito humano, direito à dignidade enquanto pessoa plena da sociedade. 

Como a escola pode trabalhar para não desperdiçar o potencial dos alunos negros nas ciências exatas?

Eu acho que todo mundo tem esse potencial e eu tenho meus dilemas. Acho que a premissa dessa ideia de “desperdiçar” é uma perspectiva neoliberal e eu não gosto dessa premissa. Como eu falei antes, é uma questão de direito humano, de pensar no quanto a escola pode servir as pessoas e não o quanto a gente pode ganhar. Isso me incomoda um pouco. A escola é que serve para as pessoas, a gente não está ali para recrutar. As pessoas acabam sendo recurso para a sociedade, mas deveria ser o contrário.


Para saber mais: 

Livros

Descolonizando Saberes. A Lei 10.639/2003 no Ensino de Ciências, de Katemari Rosa

Decolonialidades na Educação em Ciências, de Bruno Monteiro

Redes sociais de Bárbara Carine, pesquisadora e idealizadora da escola Maria Felipa, de Educação Infantil afro-brasileira

Instagram: @uma_intelectual_diferentona/

YouTube: https://www.youtube.com/channel/UC7DScaIcY6gLDBc8rmKCSGQ


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