Para pensar a prática

Mazé Nóbrega: aprendizagem significativa deve incluir a dimensão socioemocional

Consultora de Língua Portuguesa, Mazé explica a relevância de competências como autoconhecimento e empatia para a formação dos alunos e apresenta sugestões de como trabalhá-las na escola

Ilustração a partir de colagens de uma professora com personagem ficcional ao lado.
Ilustração: Rafaela Pascotto/NOVA ESCOLA

Que todos, neste período pandêmico, estão precisando de mais escuta e afeto, inclusive as crianças, sabemos. Mas como trabalhar as habilidades socioemocionais com os alunos na escola, onde tudo precisa ser tão concreto? Um dos caminhos é por meio da literatura.

“A literatura tem uma função humanizadora.” Quem disse a frase foi o sociólogo, crítico literário e professor Antonio Candido, defensor da literatura naquilo que ela tem de mais acolhedora. É isso o que indica também a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), quando coloca a literatura em um lugar “que permite o contato com diversificados valores, comportamentos, crenças, desejos e conflitos, o que contribui para reconhecer e compreender modos distintos de ser e estar no mundo e, pelo reconhecimento do que é diverso, compreender a si mesmo e desenvolver uma atitude de respeito e valorização do que é diferente.”

Em entrevista, Maria José Nóbrega, a Mazé, formadora de professores e consultora em metodologia de Língua Portuguesa de NOVA ESCOLA, comenta as vantagens de utilizar a literatura para o desenvolvimento socioemocional dos estudantes, mas não só: ela indica quais situações do cotidiano em sala e na escola favorecem esse trabalho. Confira. 

NOVA ESCOLA Por que é importante que os professores planejem o acolhimento aos estudantes, tendo como base as competências gerais da BNCC? 

MARIA JOSÉ NÓBREGA Precisamos ter claro o bate-bola que há entre a competência 8 (Autoconhecimento e autocuidado) e a competência 9 (Empatia e cooperação). Na 8, o foco é o eu, ou seja, a subjetividade, o desenvolvimento do próprio indivíduo. Quando olhamos para competência 9, nós nos deslocamos para o outro para valorizar a diversidade, reconhecer o outro, acolher a perspectiva que ele traz, aprender a dialogar. Essas duas competências formam um par. Nesse sentido, a escola tem papel importante. Boa parte do desenvolvimento cognitivo, e que, portanto, tem a ver com as habilidades que o professor vai precisar desenvolver para trabalhar os objetos de conhecimento de todos os componentes curriculares, depende muito da valorização dessas competências. Essa parte é o que chamamos de parte quente da aprendizagem. Embora ela não seja em si o objeto de ensino, ela impacta muito na aprendizagem. 

Esse é o jogo também que a BNCC coloca entre competências e habilidades, correto? 

Isso. Devemos ter claro que as competências se desenvolvem por meio de habilidades. Em cada um dos componentes Língua Portuguesa, Ciência etc. –, o professor precisa estar atento às dimensões socioemocionais para desenvolver uma aprendizagem significativa e de qualidade. Não dá para trabalhar as competências de uma forma desencarnada. São nas habilidades que a gente vai desenvolvendo ao longo de diversas situações e atividades, como no retorno que o professor dá para a criança ou na situação que ele cria para um trabalho em parceria, que isso se desenrola. Ninguém acorda e diz: "Hoje vou trabalhar competência socioemocional". Não faz sentido. Isso vem na maneira como o docente lida com os conflitos e em como intervém no trabalho de cada criança. 

Como os professores podem trabalhar essas competências na sala de aula? 

A primeira coisa é, quando for montar a aula, seja com o componente curricular que for, olhar para os agrupamentos. O que é melhor? Desenvolver o trabalho em dupla ou em grupo? Porque nessas relações horizontais, dos alunos com eles mesmos, o professor tem uma condição incrível de poder trabalhar essas competências. Ele vai estar atento a como os estudantes interagem entre si. Por exemplo, como o educador vai, de maneira sutil, colocar uma criança que tem uma fragilidade maior em relação a sua autoestima, junto a outra mais acolhedora. Ou seja, o cuidado em planejar a aula inclui não apenas a dimensão cognitiva, mas também, essas questões. Durante o trabalho que a turma está desenvolvendo em duplas, ou em pequenos grupos, o professor vai observando como as coisas vão se desenrolando. Eles estão conseguindo reconhecer a palavra um do outro? Tem diálogo? Tem alguma criança que é mais quieta, que não consegue participar?

É preciso algum cuidado com as crianças dos anos iniciais?

Com as crianças menores do Fundamental 1, um espaço interessante são as próprias situações de recreio. Como eles se comportam no intervalo? Como elas brincam? E até criar dinâmicas para tornar esse momento mais participativo, mais promotor de convivência, como, por exemplo, ensinando brincadeiras que elas possam fazer ou arrumando cantinhos para elas jogarem. São essas situações práticas que os professores devem estar atentos para promover esses desenvolvimentos e também para fazer a mediação de conflito. Aí entram as assembleias de classe e de escola para discutir esses temas.

Há situações de aprendizagem que são melhores para promover habilidades socioemocionais? 

Quando pensamos no Ensino Fundamental, é preciso mudar a relação verticalizada do professor para a criança, em que ele é a autoridade. Para trabalhar essas competências é preciso criar um ambiente mais horizontal. Falar menos e ouvir mais. Ser alguém que gerencie as palavras das crianças. E um dos melhores momentos é a roda de leitura, em que o docente pode abrir espaço para os alunos trocarem impressões sobre aquilo que eles leram. A literatura é, em geral, um texto que tem múltiplos sentidos, então vale não ficar muito preso em qual é ou não é a resposta certa, mas permitir a troca de experiências. É mais interessante do que elaborar um conjunto de perguntas, de como aquela história aconteceu, ou ‘descreva o personagem’. Isso é frio. Para trabalhar as competências 8 e 9, é preciso fazer numa dimensão quente, na qual seja possível falar do que eu pensei sobre o texto, e ser tocada por coisas que os outros viram e eu não. Essas situações favorecem o desenvolvimento dessas duas competências. 

E quais são as vantagens de fazer esse trabalho a partir da literatura? 

A própria trama já apresenta um outro, que é o escritor ou o personagem. Isso cria uma situação mais confortável, que é a do distanciamento. A literatura permite o jogo das competências 8 e 9, o Eu e o Outro. Quando se lê o que está acontecendo com o personagem, foca-se no outro, mas o leitor se projeta. Ele pensa o que faria naquela condição, ele julga se o personagem agiu bem ou mal, e isso abre caminho para o leitor se conhecer como um espelho em relação ao outro. A literatura tem esse potencial. Ela cria um lugar de conforto, mas as escolhas que o leitor faz para pensar os outros são dele e, nesse sentido, ele se projeta, consegue pensar sobre os próprios sentimentos e se conhecer melhor. 

Como os contos e as fábulas são gêneros breves, muito presentes nos livros didáticos, uma forma bacana de explorar isso com as crianças é o professor ler novelas infantis, em capítulos, com narrativas mais longas. Muitas vezes, principalmente nas escolas públicas, as crianças não têm acesso a essas histórias.

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