Entrevista

“O impacto do ciberbullying no longo prazo é imensurável”

Doutora em Psicologia da Educação, Marta Gonçalves explica que os efeitos da modalidade virtual do bullying podem ser duradouros e difíceis de controlar, mas precisam ser discutidos por escolas e famílias

Ilustração abstrata de aluno com rosto iluminado por tela de celular.
Ilustração: Rafaela Pascotto/NOVA ESCOLA

“Eu já sofri ciberbullying!”: um em cada três estudantes brasileiros concorda com a afirmação, parte de uma sondagem da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o tema em 30 países. Os impactos para quem faz parte da estatística variam entre evitar participar da videoaula, passam pelo baixo rendimento escolar e podem chegar até a casos de depressão, pânico e suicídio.  

Por baixo da pele de quem sofre os ataques convivem sentimentos como a vergonha, o medo, a raiva e o desespero da exposição contínua e multitela. Há quem se revolte, mas com muito apoio de amigos, familiares e educadores, consegue-se negociar uma solução mediada para a situação ou expor criticamente o que aconteceu. Muitos outros, porém, não contam com as ferramentas ou a rede de apoio para lidar com o tema, e sofrem muito em silêncio – às vezes por bastante tempo. 

Para enfrentar o ciberbullying e melhorar a convivência na comunidade escolar, é preciso olhar também para os papéis e responsabilidades daqueles que fazem os ataques, bem como para os espectadores, isto é, todos que, de alguma forma, visualizaram, compartilharam, riram, calaram ou excluíram um episódio de agressão virtual de suas vidas. 

“É comum associar o autor [do ciberbullying] como o valentão da turma. Isso não é verdade. Não temos como personificar, especialmente no ciberbullying que tem a característica do anonimato”, explica a doutora em Psicologia da Educação pela PU-SP Marta Gonçalves. Para a psicopedagoga e especialista em Psicologia do Desenvolvimento do Instituto Singularidades, o impacto do bullying e do ciberbullying, sua complexa modalidade virtual é imensurável, o que só reforça que o tema precisa estar na ordem do dia para os professores e demais envolvidos no ambiente escolar, inclusive ao longo do ensino remoto.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista com Marta Gonçalves:

NOVA ESCOLA: Quais as consequências a longo prazo para a vida de uma criança e um adolescente alvo de ciberbullying?

Marta Gonçalves: Não dá para mensurar. Não temos como saber o impacto daquele ato realizado na pessoa, seja ela criança, seja adolescente, se carregará aquilo para toda sua vida ou não. Vai depender das reações da escola, dos adultos envolvidos, do que foi feito e se teve alguma consequência para o autor, por exemplo, o que raramente acontece. Cada pessoa é uma pessoa. Há quem guarde isso para o resto da vida e dê uma consequência agressiva para esse sentimento represado. Tudo depende de como a situação foi resolvida, e, como disse, muitas vezes não foi tomada nenhuma atitude por ninguém.

O ciberbullying é mais nocivo ou mais cruel do que o bullying?  

É tão nocivo quanto. A diferença é que, a partir do momento em que ele é disseminado [on-line], é impossível parar. No caso do bullying, caso o aluno muda de escola, ele não necessariamente carrega junto [o bullying]. Mas o ciberbullying é muito difícil parar. O post, uma vez que caiu na rede, perdeu o lastro. Cruel os dois são: acabam com a autoestima do aluno, levam à depressão e a transtornos emocionais imensuráveis. 

Quais as consequências para o bem-estar de uma criança e de um adolescente alvos de ciberbullying?

Há várias situações: baixo rendimento na escola, fobia social, apresentar quadros depressivos e, principalmente, a autoestima despenca. 

Como sofrer bullying e ciberbullying interfere na vida escolar? 

A criança pode não querer ir mais à escola ou ter dificuldade de se relacionar com os colegas. Esses são os aspectos mais presentes. Tem a evasão escolar também, mas  o mais comum é querer mudar de escola, o que impacta na criação de vínculos, no pertencer, que é uma coisa fundamental nessa etapa da vida. 

A experiência de ser alvo de cyberbullying costuma ser solitária? 

Assim como o bullying, o cyberbullying pode ser uma experiência solitária. As pessoas que sofrem isso ficam envergonhadas. É comum alguém receber um meme, uma figurinha e compartilhar sem refletir sobre esse ato. Quem dissemina o conteúdo também está praticando ciberbullying. Nada garante que aquela publicação aparentemente inofensiva não tenha a intenção velada de agredir, ofender. E quem compartilha não percebe que o ato de compartilhar também é um ato de agressão. 

As crianças e os adolescentes tendem a ajudar os colegas alvos de bullying, ou de se afastar? Como esse tipo de troca costuma acontecer? 

Infelizmente, é comum que o bullying e o ciberbullying sejam praticados por um grupo, tanto no caso de crianças quanto de adolescentes. É muito comum, por exemplo, as crianças rejeitarem uma outra por qualquer razão – aí cabe aos adultos intervirem. Vai ter criança que vai se juntar aos agressores e outras que vão se afastar completamente. E as duas coisas são ruins, então elas precisam ser orientadas. 

É possível caracterizar um perfil de autores de bullying e ciberbullying? 

É comum as pessoas associarem o autor como o valentão da turma. Isso não é verdade. Não temos como personificar os autores, especialmente no caso do ciberbullying, que tem essa característica do anonimato. Mais uma vez, esse é um tema que deve envolver as famílias. Tem crianças e adolescentes que gostam de ofender, humilhar, excluir, então e é preciso ficar atento para que essa criança não estrague a convivência de outra. Muitos pais costumam deixar isso passar sem maiores consequências.

Quais as dificuldades que a família, a escola e a sociedade em geral têm para lidar com o problema? Quais as raízes dessa dificuldade?

Muitas pessoas acreditam que tudo bem praticar bullying. Na sociedade de um modo geral, é tudo brincadeira, trollagem. Muitos familiares afirmam isto: “Ah, na minha época não era bullying”. Mas era, sim! 

O bullying é caracterizado pela repetição. No ciberbullying, a repetição se dá de outra forma e isso é muito delicado porque as pessoas são perseguidas. A sociedade precisa compreender que é um problema e a escola tem de incluir no currículo a discussão. Nós, da Educação, precisamos insistir e mostrar que isso é coisa negativa, que impacta na vida do outro, traz tristezas, mágoas e que é errado. 

A família também deve ser envolvida. Ela precisa reconhecer o tema como algo importante e estar atenta aos sinais. Ao mesmo tempo, precisa trazer para dentro de casa as discussões sobre isso. Tratar [o bullying/ciberbullying] como brincadeira é umas das grandes barreiras para lidar com o problema.

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