Escrita de fã para fã: o potencial da fanfic nas aulas de Língua Portuguesa
Presente na BNCC, o gênero textual é típico da juventude e das comunidades do mundo digital. Saiba como trabalhar com as turmas do 6º ao 9º ano
Quem nunca – ao fechar um livro, terminar de maratonar uma série ou de rever um filme favorito – pensou em finais diferentes, especulou sobre o que aconteceu com os personagens depois ou mesmo teve vontade de escrever um capítulo totalmente novo da história? Se no passado esse tipo de intervenção era mais difícil, hoje quem aprecia uma obra não apenas pode ter uma plataforma para dizer o que pensa, como também se encontrar com quem compartilha de seus interesses.
Mais do que isso: os fãs deixaram de ter apenas um papel passivo no consumo dessas obras e começaram a colocar as mãos na massa.
Assim surgem as fanfics, ou fan fictions. Em português, ficção de fãs. Trata-se de um gênero típico dos tempos atuais, em que as pessoas podem ser protagonistas na produção e edição de conteúdos.
Muito presente no ambiente digital e na vida dos jovens, a fanfic, fanfiction ou escrita de fã é um gênero textual com bastante potencial para as aulas de Língua Portuguesa do Fundamental 2.
Que obras podem se tornar fanfics? Qualquer uma: livros, música, videogames, quadrinhos, não há um limite. Geralmente, fanfics são criadas por comunidades de fãs altamente engajadas com alguma história, não importa o formato que tenham. Existem obras originadas a partir do universo cinemático da Marvel, por exemplo, mas também da série de livros Crepúsculo ou da televisiva Star Trek - Jornada nas Estrelas.
Um dos aspectos mais interessantes das fanfics é que elas dão liberdade a seus criadores. Embora a base das histórias seja um certo universo ficcional, elas podem tomar rumos diferentes e se tornar independentes das obras inspiradoras, inclusive rompendo com as regras estabelecidas pelos autores originais.
O que é uma fanfic?
Trata-se de um gênero literário. Como o nome sugere, é a apropriação de obras já existentes, sejam em texto, vídeo, áudio ou outras mídias, por parte dos fãs.
Além de consumir o conteúdo, essas pessoas criam obras paralelas usando como base o mesmo universo do que as inspira. Em diálogo direto com os autores primários, os criadores de fanfics desenham histórias alternativas, complementares ou até derivadas das originais.
Na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) de Língua Portuguesa para o Fundamental 2, a fanfiction aparece no Campo Artístico Literário e na habilidade abaixo:
EF69LP46 - Participar de práticas de compartilhamento de leitura/recepção de obras literárias/manifestações artísticas, como rodas de leitura, clubes de leitura, eventos de contação de histórias, de leituras dramáticas, de apresentações teatrais, musicais e de filmes, cineclubes, festivais de vídeo, saraus, slams, canais de booktubers e redes sociais temáticas (de leitores, de cinéfilos, de música etc.), dentre outros, tecendo, quando possível, comentários de ordem estética e afetiva e justificando suas apreciações, escrevendo comentários e resenhas para jornais, blogs e redes sociais e utilizando formas de expressão das culturas juvenis, tais como vlogs e podcasts culturais (literatura, cinema, teatro, música), playlists comentadas, fanfics, fanzines, e-zines, fanvídeos, fanclipes, posts em fanpages, trailer honesto e videominuto, dentre outras possibilidades de práticas de apreciação e de manifestação da cultura de fãs.
Obras criadas por fãs podem se encaixar nos chamados gêneros digitais, explica Raquel Zandonadi, professora de Língua Portuguesa em Praia Grande (SP), mestre pela Unesp e pesquisadora especializada em fanfics. "Para além de estarem na web, só funcionam nesse espaço específico, isto é, produzidos para serem lidos (comentados e curtidos) em dispositivos eletrônicos, com aparatos tecnológicos", conta ela, que é a consultora pedagógica dos conteúdos desta edição do Nova Escola Box.
Trabalhar com obras de natureza digital é importante porque a escola deve trabalhar com práticas linguísticas do cotidiano dos alunos. Ou seja, se hoje os adolescentes se comunicam, leem e escrevem no ambiente digital, é interessante que as aulas de Língua Portuguesa considerem essa realidade. “Esses gêneros devem fazer parte do universo das aulas, como já fizeram a carta, por exemplo, que hoje já não pode mais ser considerada uma prática textual viva do universo jovem", explica Raquel.
"Fanfics não são apenas um produto cultural, mas, principalmente, um produto de comunidades", explica Claudia Fusco Oliveira, escritora, roteirista, professora e mestre em estudos de ficção científica pela Universidade de Liverpool, na Inglaterra.
"Elas são uma extensão da paixão que sentimos por uma série, filme ou livro, que muitas vezes não se contenta apenas pelo que é produzido na mídia de origem. As fanfics combinam o potencial criador de seus leitores e o senso de comunidade que só as paixões em comum podem despertar", diz.
Segundo a pesquisadora, a fanfic é algo que nasceu até antes da internet e da comunicação em rede digital. Ela cita como exemplo as Edisonades, narrativas que colocam o empresário e inventor americano Thomas Edison como personagem em aventuras no começo do século 20 e as histórias criadas por fãs do detetive Sherlock Holmes. "Fanzines tinham essa função nos anos 1990. A internet apenas ampliou o escopo das pessoas que podem conhecer essa prática. Gosto de pensar que essa forma de contar histórias, de certa maneira, democratiza a prática da escrita e da imaginação”, analisa Claudia.
Ideias para levar as fanfics para as aulas de Português
É justamente por isso que a fanfic é uma ótima ferramenta para a sala de aula. O aprendizado ocorre porque os alunos vivem o gênero textual e não apenas porque falam sobre ele, afirma Josiani Kely Milesk, professora de Língua Portuguesa da rede pública estadual paulista e mestra na área de linguagens e letramentos pela Unesp de Assis.
"Esse gênero acaba por favorecer a prática de escrita porque os alunos escreverão sobre aquilo que gostam, que são fãs", diz Raquel Zandonadi. "Além disso, as fanfics fazem parte do mundo jovem. São abrigadas em websites que se assemelham a redes sociais. Mais um ponto a favor do professor que decidir trabalhar com esse gênero."
A fanfic incentiva as pessoas, não apenas os alunos, a escrever. Para se aventurar no seu universo favorito, o autor desse gênero precisa se arriscar. Por isso, diz Claudia Fusco Oliveira, a principal lição que podemos tirar das fanfics é que o território da escrita é para todo mundo. “Ela não exige nada além de paixão por um assunto e vontade de colocar ideias no mundo. Todo mundo pode beneficiar-se desse pensamento – seja a criança que se diverte inventando histórias com seus personagens favoritos, seja o adulto que deseja brincar com narrativas como uma forma de criar."
Para Raquel Zandonadi, a fanfic também aproxima os alunos das aulas de Língua Portuguesa porque eles veem refletidas ali práticas reais do uso da linguagem. "O jovem não deseja apenas fruir a cultura, ele deseja produzir, participar dela. E quando vê que pode continuar a história da série que só será lançada no próximo ano, por exemplo, sente que faz parte dessa cultura e, de fato, faz", observa.
Fanfics também possibilitam a articulação de diferentes modos discursivos, explica o professor Alex Nogueira, professor do Colégio Rainha da Paz (SP): "Quando um aluno recria o final de uma série de TV, por exemplo, ele está partindo de uma narrativa audiovisual para uma narrativa verbal".
Segundo Nogueira, o professor pode aproveitar algo que já existe na e fazer com que o material venha da internet para circular dentro da sala de aula.
Em sua escola, existe uma oficina opcional de fanfics. No contexto da pandemia, explica, os professores perceberam que muitos alunos jogam videogame enquanto assistem às aulas. Por isso, decidiu-se usar as histórias dos jogos para inspirar fanfics:
"Pensamos em abrir uma possibilidade para que esses alunos pudessem fazer a produção de fanfic a partir da narrativa de videogame", diz o professor. "O videogame é uma narrativa, tem fases, ele tem histórias, enredos, personagens, enfim, muitos inclusive são baseados em filmes", explica Alex.
Por isso, é fundamental entender quais são os gêneros e obras preferidos dos alunos antes de propor atividades dessa natureza.
"É importante sondar preferências e promover essa atmosfera fandom em torno da obra original eleita, isso faz toda a diferença na fruição do objeto, dando espaço para interpretações distintas e (re)criações autorais", reflete Josiani.
Alex Nogueira vê a necessidade de o professor ter objetivos bem delineados ao usar a ficção produzida por fãs como ferramenta de aprendizado. "Principalmente porque é um gênero do universo do próprio aluno. Então a gente tem de saber o que quer fazer com esse conhecimento prévio”, aconselha.
A professora Josiane relata que as vivências mais significativas na construção do gênero em sala de aula se deram com os estudantes do 9º ano. Isso porque os alunos dessa idade percebem a fanfic como um espaço para fruir a imaginação, usar um vocabulário próprio mais informal e apresentar novos desfechos que desejam dar às histórias.
Para Josiane, ainda é necessário superar algumas barreiras para que o gênero seja incorporado à sala de aula. "Precisamos desconstruir a ideia de que se trata de uma escrita de menor qualidade, por ser de massa", avalia. É mais interessante encarar as fanfics como mais uma possibilidade de fazer fruir outras literaturas e enfatizar a importância de se considerar as coleções e preferências dos alunos.
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