Entrevista - Maria da Paz Castro

Para especialista em Educação Inclusiva, volta ao presencial dos alunos com deficiência é mais urgente

Educadora e formadora de professores na área de Educação Inclusiva, Maria da Paz Castro defende olhar vigilante da sociedade para que as crianças e adolescentes com deficiência possam acessar o espaço escolar

Animação criada a partir de fotomontagem de cadeira de rodas sobre fundo fotográfico com imagens de momentos de ensino remoto.
Créditos: Duda Oliva/NOVA ESCOLA, Getty Images e Marcus Aurelius/Pexels

Além de ser um direito, a inclusão dos alunos com deficiência nas escolas regulares é ponto a favor da diversidade e da convivência para toda a comunidade escolar. Com os avanços na legislação nos últimos 30 anos, a inclusão de crianças e adolescentes com deficiência nas escolas aumentou: eram 300 mil em 2009, hoje são 824 mil matriculados no Ensino Fundamental, de acordo com o Censo Escolar 2020.

Mas quais foram os impactos da pandemia no acesso e na aprendizagem desses estudantes? E mais: como garantir um retorno seguro e aberto à inclusão de todos?


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Além da crise do coronavírus, declarações recentes como a do atual ministro da Educação, Milton Ribeiro, que contestam os ganhos para a comunidade escolar da inclusão de alunos com deficiência nas escolas regulares, reforçam a posição do governo federal, que, em 2020, tentou lançar um decreto que previa a criação pela União, em parceria com estados e municípios, de programas e ações para o atendimento especializado para alunos com deficiência, além de incentivar a criação de escolas especializadas para surdos, são sinais de alerta. A segregação prevista pelo decreto foi considerada um retrocesso e foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por inconstitucionalidade. 

Diante desse cenário, Maria da Paz Castro (mais conhecida como Gunga), educadora e formadora da área de Educação Inclusiva, defende um olhar vigilante para os retrocessos institucionais que podem ameaçar o trabalho de inclusão construído nos últimos anos. Mas na sala de aula há também o que pode ser feito. 

É fato que os alunos com deficiência podem ter acumulado maior defasagem de aprendizagem, seja pela falta de acesso à tecnologia, seja pela carência de acompanhamento em casa para as atividades da escola. Por isso, na volta ao presencial, um olhar personalizado para esses alunos é o primeiro passo. “O mais importante é que possam ser olhados do jeito que eles têm direito de ser. Como sempre tiveram, mas a volta é um momento especial”, defende Gunga. 

A educadora aponta ainda a necessidade da volta ao presencial, uma vez que os alunos com deficiência sentem particularmente os efeitos do distanciamento e do convívio da escola. “O que eles precisavam era mais urgente. É mais urgente a volta deles do que a volta dos outros”, afirma.

NOVA ESCOLA conversou com a educadora para levantar alguns pontos de dificuldade e solução para receber os alunos com deficiência no retorno das aulas presenciais. Confira os principais trechos.

NOVA ESCOLA: Já temos uma menor inclusão dos alunos com deficiência no Ensino Fundamental 2, há risco de retrocesso com a pandemia? 

MARIA DA PAZ CASTRO: Mais do que nunca temos de tomar cuidado para que isso não aconteça. Mas existe o risco. Outra coisa é que todos os alunos, não só do Fundamental 2, terão de receber da escola um olhar especial para ver como é que eles estão.

Obviamente, os alunos com deficiências foram mais prejudicados, mas o mais importante é dar uma atenção para ver exatamente o jeito que eles voltaram e o melhor pode ser retroceder um pouco na escolaridade. Eu não estou falando de reprovação, mas de mexer um pouco com o que estava proposto com esses alunos especificamente do que retroceder no processo de inclusão de todo mundo. Eu acho que é importante ficar sempre alerta, mas não acho que ele se diferencia nesse sentido, tirando a questão das leis.

Teve muita evasão: evasão de crianças que não tinham computador, por exemplo, ou porque não conseguiam um acompanhamento. É difícil, podem ter sentido alguma dificuldade, não tinha ali alguém do lado o tempo todo e aí vão desistindo. O mais importante é que eles possam ser olhados do jeito que eles têm direito de ser. Como sempre tiveram, mas a volta é um momento especial.

À medida que os alunos com deficiência entram na adolescência, quais são as barreiras enfrentadas por eles nesta pandemia/ensino remoto e agora no retorno, com o ensino híbrido?

A adolescência é um momento muito especial, em que conviver com iguais, ou seja, com outros adolescentes, é estruturante para todos eles. Então, essas crianças precisam conviver.

As crianças com alguma questão mental, autismo, psicoses, precisam desse convívio, mas também, de ajuda para esse convívio. Então, essa já é uma barreira enfrentada, independentemente da pandemia. 

Mas eles também enfrentaram as mesmas barreiras que os demais, como falta de acesso à tecnologia e a carência de acompanhamento para as atividades da escola. 

Porém, no caso daquelas com algum tipo de deficiência, o mais importante é o afastamento dos iguais. Porque as crianças que são cegas ou surdas, ou têm algum outro tipo de deficiência orgânica, precisam conviver com os outros.

Numa perspectiva de diversidade, é necessário que conheçam todas as crianças, uma diferente da outra, e que haja um bom trabalho do professor para que não seja  um empecilho em suas vidas escolares. Todos já perderam bastante e a volta é ainda mais fundamental para eles. Quanto mais eles forem submetidos ao ensino remoto ou mesmo ao híbrido, mais eles vão perder.

O mal já está feito, eles já foram afastados da escola, e isso foi mais prejudicial para eles do que para as outras crianças, que sofreram muito também. Mas acho que eles têm essa questão de precisar estar muito ao lado dos outros adolescentes, das outras crianças, da vida em grupo, então o que eles precisavam é mais urgente, é mais urgente a volta deles do que a volta dos outros, penso eu.

Os alunos com deficiência que vão para a escola estão mais vulneráveis na pandemia? 

Tirando aquelas crianças que têm alguma questão orgânica, de ordem física que interfira diretamente em relação à covid, eles não são mais mais vulneráveis que ninguém, não. 

Eles foram mais prejudicados que os outros por conta do isolamento, já que para eles a vida com o outro é fundamental. Eles perderam muito, mas não tão mais vulneráveis.

Eles vão precisar, talvez alguns deles, de um pouco mais de atenção, mas acredito que outras crianças vão precisar de muita atenção se a gente pensar que teve luto, efeitos físicos, do corpo que ficou parado e o medo. Como disse, essas crianças foram um pouco mais prejudicadas pelo isolamento, mas agora na volta eu não acredito que eles sejam mais vulneráveis, a não ser que tenham uma questão de saúde específica.

Qual a importância da permanência dessas crianças e adolescentes nos espaços da escola e quais cuidados precisam ser tomados para que eles sejam acolhidos de maneira adequada em 2021 e 2022? 

De novo é a questão da convivência. E para todas as crianças, que são prejudicadas quando não podem conviver com a diversidade. Existe um trabalho muito bacana que as escolas têm feito para que todas as crianças consigam se ver a partir de uma igualdade, de uma equidade, mas as crianças precisam estar na escola para que isso aconteça, todas elas. 

Quais os cuidados são tomados para que eles sejam acolhidos de maneira adequada em 2020, 2021 e 2022? Em princípio, os mesmos que os outros. Aqueles que têm questões que são físicas vão precisar de um cuidado maior em relação aos protocolos de higiene e saúde. Mas todas as crianças têm de ser acolhidas do mesmo jeito, precisam voltar para a escola com a certeza de que aquela escola é a escola delas, que estava esperando por elas, que o lugar delas está lá. Eu acho que isso é o mais importante de tudo, tanto para elas quanto para suas famílias. 

E as outras crianças, repito, precisam conviver com todos. Porque se a gente for olhar, todos são diferentes. E isso não pode acabar, eu não acho que eles precisam de um cuidado maior. É um cuidado que precisará ser feito com todos, entender o que perderam do ponto de vista curricular e o que pode ser feito gradualmente para sanar essa perda.

Outra coisa superimportante é que essa pandemia é de âmbito mundial, mudou os rumos da história. Mudou tudo e a escola vai ter de mudar também. Não dá mais para a gente ter um currículo ali de determinada série e ficar avaliando os alunos a partir desse currículo. Então, se o aluno não alcançou o currículo ele repete. É um momento importante para a gente retomar a reflexão de que é preciso que o currículo seja feito a favor das crianças e não que as crianças tenham de estar a favor de um currículo.

É uma boa hora pra gente olhar tudo de novo. Acho que isso para todos, mas quanto mais o colégio, uma rede ou mesmo um país reverem o seu currículo, se debruçarem sobre ele, mais inclusiva a escola pode ser. Ainda mais agora, que existiram muitas perdas e a gente vai ter de flexibilizar. Então vamos com esse currículo de maneira que todos possam ter acesso. E eu não digo facilitar o currículo, mas ter um currículo aberto e flexível. Não um ano para trás, mas um currículo aberto e flexível em que as crianças possam estudar a mesma área, mas talvez não as mesmas coisas. E o professor é muito bom nisso, basta que a escola e o sistema não exijam deles que ensinem para crianças o que algumas delas não estão conseguindo aprender.

Há cuidados particulares a serem tomados pela escola e pelos professores de acordo com a deficiência do aluno? Quais?

Se alguma criança requer um cuidado maior com a higiene por ter maior vulnerabilidade do ponto de vista imunológico, ou não consegue ficar de máscara, há um trabalho a ser feito e essa criança com deficiência precisa de cuidados particulares. Mas a gente pode pensar que isso não é mais do que outras crianças podem precisar. Tem muita criança que está chegando de luto, tem muita criança que não conseguiu acesso ao ensino remoto e vai precisar de um cuidado muito grande também, particular até. Todas são questões da escola, não são questões particulares, são questões da escola, do sistema de ensino, das redes, das políticas públicas. A gente não pode dizer que vai voltar e continuar tudo como se apertasse no botão. Não, a escola é outra e cada aluno vai voltar de um jeito diferente. Então vai ter de fazer 65 currículos? Não, não. O professor sabe muito bem o que fazer a partir de uma base curricular que talvez tenha de ser mudada, porque um ano e meio fora da escola não foi facil pra ninguém.

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