“Autocompaixão do professor é fundamental neste período desafiador”
Referência em saúde mental nas escolas, psiquiatra fala sobre os efeitos da pandemia e do isolamento para alunos e educadores - e como lidar com tudo isso na volta ao ensino presencial
Só cuida bem quem está bem. Esta ideia ganha novos contornos na hora de receber os alunos de volta ao ensino presencial. O isolamento elevou o nível de estresse e ansiedade de todos, mas as crianças e adolescentes contam com menos maturidade e ferramentas internas para lidar com períodos desafiadores como o que estamos vivendo. Para apoiá-los, os professores precisam estar atentos ao seu próprio bem-estar mental.
NOVA ESCOLA conversou com Gustavo Estanislau, psiquiatra da Infância e Adolescência e pesquisador do Instituto Ame Sua Mente, para ajudar os professores a identificarem os sinais que mostram que a saúde mental dos alunos não está bem.
São esperados quadros de estresse e ansiedade, que se convertem em desânimo e baixo rendimento. Mas, na maior parte dos casos, as coisas tendem a se acomodar rapidamente. A dica é aproveitar os primeiros dias de retorno para atividades mais lúdicas, de interação e menor exposição. Afinal, eles ficaram muito tempo longe do convívio com os colegas e segurança e timidez podem desencadear ansiedade. Se os quadros persistirem, peça ajuda e engaje os pais na busca de soluções.
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O mesmo vale para o professor, não tenha medo de buscar auxílio, de expor fraquezas e dificuldades. Além disso, exercite a autocompaixão: está tudo bem não dar conta de tudo e não render o mesmo que rendia em outros tempos. A nova rotina é desafiadora, mas com paciência e acolhimento, de todas as partes, será possível superar essas barreiras. “Se cuidar com carinho pode fazer com que a gente chegue num ponto onde se sinta de novo mais competente, mais seguro”, afirma.
Confira abaixo a entrevista que Gustavo Estanislau concedeu a NOVA ESCOLA.
NOVA ESCOLA: A saúde mental das crianças e adolescentes do Ensino Fundamental 2 já estava em declínio antes da pandemia, com aumento de casos de ansiedade e depressão. Como a pandemia e o isolamento social afetaram os alunos neste último ano?
Gustavo Estanislau: A saúde mental das pessoas foi afetada por alguns aspectos da pandemia, como o isolamento. Pessoas que ficam isoladas por bastante tempo tendem a se sentir desmotivadas. O circuito de recompensa do cérebro, que fica estimulado quando a gente se expõe a coisas gostosas, quando a gente se expõe a coisas em geral, começa a ficar cansado dos estímulos que a gente tem no isolamento, gerando desânimo. Não há recompensa quando a gente se expõe às mesmas coisas ao longo do tempo.
Outro fator importante são as mudanças de rotina. Muitas pessoas falaram que as mudanças de rotina foram boas para as crianças, que podiam acordar mais tarde, dormir mais tarde, tinham mais tempo dentro de casa… Mas o cérebro não entende essas coisas de uma forma tão simples, ele está habituado às rotinas.
Mudanças que aconteceram de forma muito abrupta geraram outros dois desdobramentos: estresse e ansiedade. A ansiedade tem a ver com ficar pensando demais nas coisas, preocupando-se mais, enquanto o estresse é caracterizado por uma reatividade física, que faz com que a gente fique mais à flor da pele, daí as crianças ficarem um pouco mais assustadas e irritadas. As pessoas passaram por perdas financeiras, familiares e separações. E as crianças e adolescentes tiveram de lidar com esse contexto, ficando mais deprimidas, ansiosas ou estressadas.
De uma forma bem didática a gente tem uma série de fatores que se modificaram na pandemia, como a rotina e as inseguranças em relação ao futuro. Os estudos confirmaram isso: primeiramente, a gente teve muita queixa de estresse, de ansiedade, com o passar dos meses, o desânimo e a pouca motivação.
Como isso se reflete na vida escolar?
Começando pelo estresse, que é um fenômeno psicológico bastante frequente neste período. Com as mudanças de rotina e a imprevisibilidade das coisas, na volta às atividades é esperado que as crianças apresentem um grau de estresse um pouco maior, que fiquem um pouco mais à flor da pele.
As menores tendem a ficar mais manhosas, mais infantilizadas. É esperado também que as crianças apresentem estados de ansiedade um pouco maiores, principalmente no Fundamental 2, que é um momento onde o corpo está mudando e é natural que as crianças fiquem um pouco mais tímidas e inseguras de voltar para a sala de aula.
Temos de lembrar que as crianças passaram muito tempo dentro de casa sem se expor, então falar na frente dos outros, ler na frente da turma, por exemplo, podem ser tarefas muito mais tensas neste período inicial de retorno.
É possível que a gente veja pessoas que estão muito desmotivadas, com pouca energia para fazer as atividades. Há ainda as crianças que tiveram perdas e precisam de mais cuidado, porque elas podem estar traumatizadas e com menos motivação ainda para voltar para a escola.
Mas muitas dessas coisas tendem a se acomodar ao longo do tempo. Então a gente tem visto crianças que apresentam mais ansiedade, mais insegurança, reatividade por alguns dias. E conforme elas vão se expondo a estímulos novos e vão se motivando, encontrando os amigos dia após dia, vão se acostumando de novo com esse tipo de exposição. Então isso tudo tende a ir se adaptando ao longo do tempo.
Como os próprios professores podem se cuidar e se preservar diante do sofrimento dos alunos? Ou seja, como encaminhar, acolher, sem se envolver pessoalmente?
Primeiro é ter autocuidado básico: priorizar o sono e utilizar todas as estratégias que puder para dormir direito. Dormir é uma atividade fundamental para que a gente tenha equilíbrio na saúde mental.
Número 2: prestar atenção na hidratação e na alimentação como um todo é importante neste período. Outra coisa importante é o exercício físico, uma boa caminhada com outro tipo de exercício, às vezes fazer coisas em casa como por exemplo arrumar as coisas de casa etc. podem gerar o mesmo benefício de um exercício. É legal priorizar essas coisas básicas.
Mais uma coisa: a gente escutar o nosso corpo, escutar a nossa cabeça, não tentar fugir dos sinais que este dá. Respeitar a nossa saúde mental e não tentar negá-la. Falar com as pessoas e buscar ajuda eu acho que é fundamental.
E uma coisa que eu considero fundamental neste período desafiador é a autocompaixão. Esse retorno é muito novo, tem muitos processos acontecendo. Desde as medidas de cuidado de higiene até o estado de espírito das crianças, das pessoas, enfim, são muitas coisas diferentes.
Professores são profissionais muito apaixonados pelo que fazem e se cobram muito tentando entregar a mesma coisa que entregavam muito tempo atrás. Então, precisa ter esse cuidado, tentar não sofrer tanto com os nossos erros e considerar que eles fazem parte de um processo novo. Ficar muito chateado consigo porque não deu uma aula boa só faz com que a gente ao longo do tempo vá se desanimando mais. Se cuidar com carinho pode fazer com que a gente chegue num ponto onde se sinta de novo mais competente, mais seguro.
Uma última coisa é que a gente está vivendo o momento de uma sobreposição muito grande de tarefas, onde a tecnologia está cada vez mais intrusiva na nossa vida. A gente está trabalhando dentro de casa, ao mesmo tempo que a gente está cuidando dos filhos e da casa. Então um cuidado que precisamos desenvolver é conseguir respeitar alguns tipos de horário, tentar desligar o telefone em determinada hora para poder dormir, se desconectar de atividades do trabalho no fim de semana e na hora do almoço e respeitar nossos horários de lazer e de descanso.
Quais os principais sinais aos quais os professores devem estar atentos quando o assunto é a saúde mental dos alunos?
Sempre que a gente fala da saúde mental de crianças e adolescentes, alguns parâmetros para prestarmos atenção são o sono, o apetite e o nível de energia. Então, se a criança estiver dormindo pior que o normal, se alimentando mal, demonstrando menos prazer em se alimentar ou ficando mais assustada ao se alimentar, mais reativa aos alimentos, ou apresentar alterações no nível de energia dela, como, por exemplo, não querer brincar e interagir, são sinais importantes para prestar atenção.
Outra coisa importante são as crianças que se recusam a voltar à escola. Muita recusa, uma convicção em não voltar à escola, é algo importante a considerar.
Outros parâmetros para prestar atenção são crianças e adolescentes que apresentam uma queda muito grande no rendimento. Mesmo considerando que muitos deles acabaram se desconectando da escola, é preciso estar atento àqueles que apresentarem um rendimento muito abaixo do que se espera para este momento. Outro sinal são crianças que estão demonstrando muita preocupação com a covid, com muito medo e reatividade. Algumas até com crises de ansiedade, portanto, a gente precisa prestar atenção.
É possível preparar-se para lidar com casos de depressão ou ansiedade que apareçam no retorno ao presencial? Como?
É possível, sim. Uma coisa fundamental é compreender que quando o adulto consegue cuidar da própria saúde mental, se empenhando em se conhecer um pouquinho mais, tentando reduzir níveis de estresse, de ansiedade e tal, ele consegue acolher melhor essas crianças.
Então, é importante que as pessoas não se sintam mal se não conseguirem dar conta da própria ansiedade, da sua tristeza, e pedir ajuda, do ponto de vista de tratamento ou aos colegas quando perceber que não está conseguindo lidar com algumas questões. É muito importante, neste momento, que a gente não se sinta envergonhado ou constrangido de fazer isso.
Um primeiro ponto é que o adulto que consegue se cuidar e ter um equilíbrio mental interno consegue fazer acolhimento. As crianças e os adolescentes percebem quando a gente está com o nível de ansiedade mais alto ou muito estressado e tende também a se sentir mais ansiosa, estressada. E isso pode fazer com que ela não consiga se abrir e se comunicar. A outra coisa é que quando a gente está em equilíbrio, conseguimos identificar o que está à nossa volta de uma forma mais coerente quando a gente está muito triste. A gente vê mais tristeza e isso pode fazer com que a gente acredite que uma criança que não dormiu direito está deprimida.
Em termos de orientação para a volta às aulas, para os alunos que estão aparentando mais desânimo, desmotivação, seria interessante oferecer atividades menos pesadas, que não exponham a criança a muitas frustrações por não ter adquirido alguns conhecimentos. Atividades mais lúdicas, atividades que permitam que a criança não se sinta sobrecarregada com a escola, principalmente nos primeiros dias, é muito importante. Porque a gente pode se deparar com crianças muito desmotivadas que não vão ter persistência com atividades complexas. Para crianças mais ansiosas, mais assustadas, mais inseguras, a gente precisa ter muita parcimônia e tomar cuidado para não ficar forçando a fazer coisas que ela ainda não está segura em fazer, como ler na frente da turma. Então, atividades um pouquinho mais brandas nesse sentido, sem muita exposição, seria interessante.
Uma última coisa bem importante em termos de orientação em relação à ansiedade é que muitas crianças com perfil ansioso tendem a ter pais que estão muito inseguros e ansiosos. Então trabalhar um pouquinho com esses pais, tentando tranquilizar, mostrando a importância de eles trazerem os filhos para a escola, vai fazendo com que aos poucos eles percam os medos. Às vezes a gente acha que a criança é que está se recusando a voltar para a escola, mas muitas vezes são os pais que estão muito inseguros. Então, dar uma palavrinha com os pais pode ser uma boa.
A partir do momento em que o professor ou outro profissional da escola identifica questões de saúde mental em um aluno no retorno, como encaminhá-las?
Esse é um momento que demanda bastante sensibilidade do educador e da escola. Quando o professor identifica alguma coisa ou fica em dúvida, é interessante discutir com os gestores escolares. É interessante o professor falar com a coordenação, com a direção da escola, para se achar uma estratégia que seja sensível e que consiga chegar aos pais.
Uma dica importante é sempre partir do ponto de que os pais se sentem profundamente responsabilizados por algum problema que a gente veja nos filhos. É bastante comum que os pais tenham uma postura mais reativa aos nossos comunicados em relação ao tema da saúde mental.
Na nossa cultura, costuma-se acreditar que a culpa é do pai e da mãe. Temos de tentar desfazer isso com os pais para que eles se sintam estimulados a tomar as decisões para poderem ajudar.
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