NA PRÁTICA

Véu, religião e direitos da mulher: como evitar estereótipos ao falar sobre o Islã

Partir do ponto de vista das próprias muçulmanas é uma das recomendações. Leia outros pontos de atenção para evitar discriminação, preconceito e a islamofobia ao trazer o tema para as aulas

Crianças afegãs esperam por doações de comida e roupas em um campo de refugiados na província de Khowst. Exército dos Estados Unidos (Sargento Andrew Smith). Dezembro de 2009.
Crianças afegãs esperam por doações de comida e roupas em um campo de refugiados na província de Khowst. Exército dos Estados Unidos (Sargento Andrew Smith). Dezembro de 2009. Foto: Wikimedia Commons

Islã ou Islam, a religião dos muçulmanos, é a segunda maior do mundo e a que mais cresce em adeptos: 1,5 bilhão de pessoas professam e compartilham a fé monoteísta fundada há 1,4 mil anos na Península Arábica. 

Apesar da dimensão e da diversidade de experiências, muitos homens e mulheres muçulmanos sofrem os efeitos negativos de estereótipos construídos pela sociedade ocidental sobre sua religião, costumes, gênero ou origem. O preconceito é tão comum que o termo “islamofobia” entrou no vocabulário em diferentes idiomas e se tornou tema de estudos e pesquisas acadêmicas no mundo todo, inclusive no Brasil.   

É o caso da professora da Universidade de São Paulo (USP), Francirosy Campos Barbosa, que é antropóloga com pós-doutorado na Universidade de Oxford, feminista e muçulmana. 

Francirosy, cujo campo de estudos há 20 anos é a islamofobia, relata que a retomada do poder do Talibã no Afeganistão, ocorrida em agosto de 2021, somada ao desconhecimento do público em geral diante de um assunto geopolítico e religioso complexo intensificou a discriminação contra os muçulmanos em geral as mulheres em particular. Em muitos casos, o alvo é a muçulmana que usa lenço, que podem sofrer ataques verbais e até físicos muito violentos. 

A pesquisadora acredita que o professor precisa de preparo, sensibilidade e olhar aberto para a diversidade ao falar do tema nas aulas para não cair em preconceitos, rótulos ou reforçar a islamofobia.

A recomendação dialoga com o que diz a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) em três das dez Competências Gerais que devem ser desenvolvidas nos alunos ao longo do Ensino Fundamental:

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Competências Gerais - BNCC


Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva.

Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza.

Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários.

Fonte: Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

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Por onde começar? Leia a seguir recomendações e pontos de atenção para evitar discriminação, preconceito e a islamofobia ao falar sobre o tema: 

1. Não generalize, valorize o ponto de vista dos próprios muçulmanos

Durante a passagem de um comboio americano (não mostrado na foto), algumas crianças acenam e observam os soldados. Exército dos Estados Unidos (Sargento Brandon Owen). Janeiro de 2011.
Durante a passagem de um comboio americano (não mostrado na foto), algumas crianças acenam e observam os soldados. Exército dos Estados Unidos (Sargento Brandon Owen). Janeiro de 2011. Foto: Wikimedia Commons

Um bom ponto de partida no Ensino Fundamental é contar mais sobre a história do islamismo, a religião dos muçulmanos, cuja fé hoje é professada por 1,5 bilhão de pessoas no mundo todo. 

É interessante retomar fatos históricos, ler trechos ou passagens do Alcorão (livro sagrado do Islã) para os alunos, conhecer os costumes e rituais que envolvem a religião, sem se esquecer de sua diversidade interna. Para isso, foque-se em fontes confiáveis na internet, busque livros e outras referências, expandindo o escopo também para ouvir os grupos minorizados envolvidos.

“Os professores têm de retomar a história do Islã e de seu profeta Muhammad, ou Maomé. É importante explicar que se trata de uma religião abraâmica (como o judaísmo e o cristianismo) e que vários profetas do Islã estão presentes também em outras religiões, como Jesus”, explica a autora do livro Hajja, Hajja: A experiência de peregrinar, publicado em 2021.


Saiba mais:
Sequência de stories gravados pela pesquisadora sobre o Talibã e divulgados no seu canal do Instagram


2. Machismo e violência não existem só no Islã

O machismo, a violência e o desrespeito aos direitos da mulher estão presentes em todas as sociedades atualmente e não são exclusividade de comunidades ou pessoas que se identificam como muçulmanas. 

No entanto, recai sobre essa religião o estereótipo extremista que, na verdade, pertence à ideologia de alguns grupos. “Os homens são machistas, não a religião [islâmica]. O que acontece é que os homens instrumentalizam a religião a seu favor”, explica a pesquisadora. É o que é chamado de leitura extremista da religião. 

3. Aponte a discriminação e fale sobre os estereótipos associados ao Islamismo

É importante conversar com os alunos sobre como roupas (véu ou turbante) ou um modo de vista diferente podem tornar os muçulmanos alvos de preconceito e violência e associá-los ao extremismo ou terrorismo, algo que outras religiões (como o catolicismo) não vivenciam atualmente.

“A questão não é a burca, o turbante ou a barba. Há pessoas com terno e gravata que podem ser tão terroristas quanto pessoas que usam turbante ou não. Precisamos tomar cuidado para não fazer essa relação direta”, completa a pesquisadora.   

José Antônio Lima, professor de Relações Internacionais, explica que atualmente é possível encontrar grupos terroristas que usam discursos religiosos diversos: a Ku Klux Klan (KKK) nos Estados Unidos identifica-se como cristã. Em Mianmar, há extremistas budistas. Esses exemplos podem ser compartilhados com os alunos para desmontar a ideia de que só há terroristas islâmicos, por exemplo. “A questão é entender que a religião acaba sendo utilizada por essas pessoas para avançar no seus projetos políticos. É claro que eles se colocam como religiosos acima de tudo, mas não é exatamente isso, tampouco a visão da maioria que professa essa religião”, afirma José Antônio. 

4. Lembre-se: mulheres muçulmanas não são necessariamente oprimidas ou submissas

É central ampliar o olhar e ouvir as experiências, desejos e pontos de vista das muçulmanas que vivem em diferentes lugares do mundo. Um exemplo  é a questão da vestimenta. “Tem mulheres que não querem usar o lenço? Tem, mas há outras que querem. Os EUA ficaram 20 anos no Afeganistão. A pergunta que fica é: as mulheres tiraram essas vestimentas? Não, a maioria  permanece usando a burca. Por isso é importante pensar na realidade que essas mulheres vivem para não criar chaves explicativas equivocadas”, aconselha Francirosy.

Sobre as mulheres afegãs, especificamente, Francirosy faz um alerta: “O movimento das mulheres precisa ser ouvido. Fazer uma escuta ativa, com que a sociedade ouça as mulheres e suas demandas. Mas não só as mulheres de Cabul, também as que vivem nas periferias, no meio rural, as mulheres que têm um monte de filhos, as mulheres que não têm acesso à saúde e à educação. Elas estão em situação ruim, mas não podemos colocá-las apenas na posição de vítimas. Elas têm suas organizações e cabe aguardar o que elas vão fazer diante da realidade que estão vivendo agora. A nós, cabe darmos voz a elas e amplificar essas vozes”. 


Saiba Mais:
Livros, referências e materiais sobre mulheres, feminismo e islamismo

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