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Papo reto: como levar o rap para as aulas do Ensino Fundamental

Conheça orientações para levar a expressão artística e cultural do hip hop para as aulas de Língua Portuguesa e Artes do 6º ao 9º ano

Ilustração de menino negro em frente a uma multidão que o observa.
Ilustração: Mity Dias/NOVA ESCOLA

O rap, ao lado do graffiti e do breaking, é parte da expressão artística e cultural do hip hop. Nascido no ambiente urbano, periférico e negro dos Estados Unidos, o rap também fincou raízes no Brasil e hoje é referência musical e de reflexão social importante, em especial no que diz respeito ao racismo e à questão racial no nosso país. 

Em 2020, o livro de letras Sobrevivendo no Inferno (do Racionais MC's) foi integrado à leitura obrigatória para o vestibular da Unicamp. Nesse disco, a música Diário de um Detento faz um relato fiel de como é a vida de um presidiário no país. Hoje, plataformas de streaming também permitem que as músicas alcancem um público ainda maior.


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Para a pedagoga, pesquisadora e rapper Negra Jaque, a cultura hip hop, e em especial as canções de rap, cumprem o papel de criar memória sobre uma parcela da população que é historicamente marginalizada e apagada, como a negra e a periférica.

“Precisamos resgatar as nossas histórias, mas também criar memórias novas, por isso é tão importante estimular que os jovens reflitam sobre o que já existe, mas também criem suas próprias narrativas”, defende a pesquisadora. 

O rap faz parte da vida dos alunos (e dos professores) e falar a língua deles é imperativo para uma pedagogia do afeto. Assim, o gênero musical e artístico pode ser um importante recurso para trabalhar competências e habilidades socioemocionais. 

Com a ajuda de professores e especialistas no tema, separamos aqui orientação para trabalhar o rap com os estudantes do Fundamental 2, levando as diferenciações entre os mais novos e mais velhos, e as potências das diferentes formas de abordagem.

Como falar de hip hop nas aulas de Língua Portuguesa - 6º ao 9º ano

Com as adversidades trazidas pela pandemia, a professora de Língua Portuguesa da EE Odair Martiniano da Silva Mandela, em São Paulo (SP), Ercília Sena da Silva entendeu que era necessário promover um reencontro dos alunos com os livros. “As crianças ficaram muito sozinhas, e como nessa fase eles já leem bem, eu passei a trabalhar mais os romances, como forma de dar uma companhia para eles e ao mesmo tempo tirar eles um pouco das tensões da pandemia”, conta. 

O livro escolhido foi o Grito do Hip Hop (de Fatima Chaguri e Luiz Puntel, editora Ática), disponível na biblioteca da escola. A história é narrada por jovens em idades aproximadas às dos alunos e costura a partir de elementos da cultura hip hop. Há o pichador, o grafiteiro, a b-girl, o poeta.

“Uma vez por semana fazemos a leitura de um capítulo juntos. Geralmente, fazemos uma leitura dramatizada, em que cada aluno pode interpretar um trecho ou um personagem específico”, conta Ercília.

O cenário da história do livro é o bairro Capão Redondo, zona sul de São Paulo, que, segundo a professora, tem uma realidade muito parecida com a dos alunos de Ercília. “Eles se identificam com a história o tempo todo. Pedem para interpretar um ou outro personagem, relacionam-se com pessoas que eles conhecem. Tem sido difícil, inclusive, encerrar a leitura. Eles querem ler tudo de uma vez.”

Assim que a leitura do livro terminar, os alunos deverão fazer uma pesquisa sobre a Cultura Hip Hop para apresentá-la em um seminário. A ideia é trabalhar as habilidades ligadas à oralidade, e com tanto movimento e ritmo a professora está ansiosa para ver o que deve surgir na apresentação. 

“No livro, tem uma passagem em que um personagem morre depois de um assalto. Nesse dias, eles leram esse trecho e na sequência começaram a cantar uma música, todos juntos. A identificação é muito grande”, relata.

Além da oralidade, a professora Ercília afirma que o trabalho tem sido eficiente para trabalhar a escrita e a composição de enredo. Afinal, nada mais natural do que falar e escrever sobre aquilo que já conhecemos. 

Rap: uma voz pelo antirracismo 

Há uma infinidade de artistas, tanto locais quanto os já integrados ao mercado musical, que vão ao encontro dos temas sociais mais presentes, entre eles, o racismo. E há ritmos muito mais populares entre os adolescentes, como o trap, que não tem um compromisso tão presente como no rap de fazer as reflexões emergirem. 

Com isso, a Negra Jaque recomenda, antes de tudo, que as músicas selecionadas sejam bem pensadas, passando por uma peneira. “É comum ter muito palavrão nas músicas, ou elas serem muito pesadas. Isso não é legal. Rael, Tássia Reis e Rafuagi são referências para esse tipo de trabalho nesta etapa”, afirma a rapper. 

Outra abordagem importante é aproximar a Cultura Hip Hop do próprio cotidiano dos adolescentes. Assim, você pode partir de perguntas como: quem é o grafiteiro da nossa quebrada? Será que alguém aqui tem um MC ou um rapper na família? A nossa cidade tem dançarinos de break? 

“Já fui em escolas com alunos de 4 anos que sabiam cantar e dançar todas as minhas músicas. E eles acham o máximo dar de cara com artista, narrando o mundo junto com ele”, conta Jaque. 

Além de Emicida, Rael, Rashid, Kamal, Preta Rata, Renan Inquérito, Racionais MC’s e MC Poze do Rodo, Negra Jaque afirma que costuma ser muito potente trabalhar com rappers que tenham a mesma faixa etária dos estudantes, como a MC Sofia e o MC Caverinha.


O que fazer nos Anos Iniciais: Batalha de rimas e coreografias

Nos Anos Iniciais, Negra Jaque afirma que a escuta das músicas e também a batalha de rimas são ações com boa capacidade de envolver a turma, cuja construção pode ser individual, mas, se coletiva como em um jogo de palavras, alcançará o desenvolvimento de habilidades mais diversas. A dica aqui, afirma a arte-educadora, é levar em conta o perfil da turma, e caso as crianças ainda sejam muito tímidas, promover essa batalha de rimas pela escrita. Tímidas ou não, ensaiar com os adolescentes coreografias de break ao estilo Tik Tok também é um caminho fácil, seguro e sem volta. Afinal, eles adoram.


O escritor, educador social e rapper Chiquinho Divilas recomenda que os professores levem em conta as peculiaridades de cada região. Há locais mais ou menos violentos, por exemplo. Com isso, nem sempre é possível replicar uma atividade de outra escola tal qual ela foi montada. Seja como for, o mais importante é dar voz aos alunos, e que as atividades favoreçam a expressividade. 

Como trabalhar o hip hop nas aulas de Artes - 6º ao 9º ano

Para levar o contexto histórico e social da Cultura Hip Hop, a professora de dança, arte-educadora e b-girl, Karina Rolim da Silva, utiliza livros, filmes, documentários e clipes de músicas que retratam como era o ambiente das festas quando o hip hop surgiu, nos guetos dos Estados Unidos. 

“É através desse resgate que eu mostro e analiso com eles o percurso dos quatro elementos fundamentais do hip hop. O breaking, por exemplo, é algo muito familiar para eles. Mas de onde veio isso? Os alunos menores têm uma necessidade muito grande de compreender a origem das coisas”, explica a professora.

A dança sempre será um elo importante para envolver os adolescentes. E nem só de breaking vive o hip hop. Karina, que é também dançarina, aconselha apresentar vídeos com danças afrodiaspóricas estadunidenses, juntamente com outras danças, como por exemplo a salsa. “Essas danças são a base das danças urbanas que conhecemos hoje. É legal mostrar para eles como chegamos nessa levada.”

As letras, segundo a professora, podem ser trabalhadas a partir das próprias reflexões trazidas pelo compositor ou compositora, com debates que vão do racismo, machismo e homofobia até a desigualdade social em si. E as análises, afirma Karina, são apenas o pontapé para que os alunos criem suas próprias letras, fazendo emergir questões pertinentes à subjetividade de cada um.

Indicações de músicas para trabalhar com as turmas do 6º ao 9º ano 

As letras das canções contam, muitas vezes, verdadeiras histórias. E algumas dessas histórias são justamente sobre a história decolonial do Brasil, ou seja, a história do país sob a perspectiva dos povos originários e da diáspora africana. Algumas indicações de Karina para trabalhar na sala de aula são: 

Manifesto Porongos (Rafuagi)

AmarElo (Emicida)

Cota não é esmola (Bia Ferreira)


Orientações para os Anos Iniciais nas aulas de Arte

Nos Anos Iniciais, é importante, sempre que possível, preservar a abordagem lúdica, que contemple as brincadeiras e o prazer que pode proporcionar. O ensino da dança breaking pode ser feito como em uma ciranda, com cada um mostrando os seus movimentos, aponta Karina, reforçando que levar a história da Cultura Hip Hop é essencial para uma abordagem mais intencional, de maneira que os alunos compreendam a origem e os porquês dessas manifestações culturais.


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