Como falar da fome e dos gargalos da alimentação no Brasil nas aulas de História
A falta de comida é um desafio histórico em nosso país. Saiba orientações para trabalhar o tema com as turmas do 6º ao 9º ano
“Chegou a desolação da primeira fome. Vinha seca e trágica, surgindo no fundo sujo dos sacos vazios, na descarada nudez das latas raspadas [...] Lá tinha ficado Josias, na cova à beira da estrada, com uma cruz de dois paus amarrados, feita pelo pai […] Ficou em paz, não tinha mais que chorar de fome, estrada afora. Não tinha mais alguns anos de miséria à frente da vida, para cair depois no mesmo buraco, à sombra da mesma cruz […]”
Esse é um dos trechos de O Quinze, romance publicado em 1930 pela escritora e jornalista cearense Rachel de Queiroz, que relata as mazelas de uma família de retirantes durante a grande seca que assolou o Ceará em 1915, desencadeando um período de miséria e fome. A obra não só chama atenção por escancarar uma dura realidade, como também por mostrar que a fome é drama recorrente na história do Brasil.
É o que afirma o historiador Rômulo de Paula Andrade, doutor em História das Ciências pela Casa de Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). “A fome sempre fez parte da nossa paisagem histórica, especialmente em um país com a economia muito pautada na ideia do latifúndio e na produção para o mercado externo”, reforça o pesquisador, que investiga as políticas de combate à fome no Brasil.
Porém, a partir de alguns momentos, segundo Rômulo, isso começa a ser mais perceptível como problema. “De modo geral, pesquisadores concordam que essa questão começa a ficar muito mais evidente a partir dos anos 1940, depois da Segunda Guerra Mundial, por conta do horror do Holocausto, quando começa a aumentar a percepção sobre os problemas relacionados à fome e instituições como a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura [FAO] são criadas”, explica.
Rômulo lembra que, no Brasil, as discussões ganharam força a partir de 1946 com a publicação de Geografia da Fome, escrito pelo médico, pesquisador e professor pernambucano Josué de Castro. Além de citar O Quinze, de Rachel de Queiroz, e A Bagaceira, de José Américo de Almeida, o livro faz um diagnóstico das causas e consequências da fome no país do ponto de vista geográfico e acentua a necessidade de uma ampla discussão sobre o assunto.
Mesmo com um debate mais acirrado em torno do problema, somente em 2014 o Brasil saiu do Mapa da Fome da FAO. Isso deu-se, de acordo com o historiador, graças a programas de redistribuição de renda, como o Bolsa Família, que no mês de novembro foi extinto pelo atual governo federal.
“Costumo dizer que isso [sair do Mapa da Fome] foi um salto civilizatório, que aconteceu a partir da dinamização das economias locais. Isso quer dizer que a fome tinha acabado? Não! Mas que a população passou a ter o mínimo possível diante do cenário da fome”, observa.
Por volta de 2015, no entanto, acentua-se no país um processo de desagregação e desmantelamento de programas sociais devido, principalmente, às suscetíveis crises políticas e econômicas que tiveram como consequência o empobrecimento da população mais vulnerável economicamente até chegar ao atual cenário: mais de 600 mil mortes por covid-19, 14,4 milhões de brasileiros desempregados e mais de 19 milhões lidando com a fome e com a insegurança alimentar.
“Em uma crise que já vinha sendo gestada desde 2015, a pandemia vem como uma perfeita tempestade trágica. Ou seja, você junta falta de acesso, de alimentação, carência de políticas públicas e pouca efetividade no combate à pandemia, e o resultado é uma tragédia, nos levando a patamares muito inferiores aos de 2014”, ressalta Rômulo.
Como falar da fome nas aulas de História?
Diante de um cenário que vem afetando tantas pessoas, levar a questão da fome para as aulas de História é fundamental para ampliar as discussões acerca da compreensão e do enfrentamento ao problema. “Josué de Castro sempre avisou que a fome não era uma questão orgânica, mas sim, multidimensional e multifatorial, ligada não só à oferta de alimentos, como também à economia, à distribuição de renda. Estamos vivendo um momento de muita incerteza e de carestia no Brasil. É importante que os alunos saibam que, quando discutimos inflação e alta no preço dos alimentos, por exemplo, estamos discutindo a fome”, frisa o historiador.
O que os professores podem fazer, segundo o educador, é chamar atenção dos alunos para uma questão que voltou a estar presente no cotidiano do brasileiro de forma severa e que também está prevista na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), quando esta propõe reflexões sobre a desigualdade social e a cidadania, por exemplo.
“O enfrentamento só ocorre com a mobilização da sociedade civil. Sempre foi assim e sempre vai ser. Por isso, o professor pode incentivar os alunos a pensarem, do ponto de vista local, quais são as carestias das populações e o que pode ser feito em torno disso”, reflete.
Pensando no currículo de História para turmas do 6º ao 9º ano, vale trazer à tona a questão da fome ao falar, por exemplo, sobre a Segunda Guerra Mundial e a Era Vargas, momentos históricos em que passam a existir políticas públicas voltadas ao combate à fome.
Uma dica é acessar o site do Centro de Pesquisa e Documentação Contemporânea da Fundação Getulio Vargas e buscar no arquivo diversos materiais digitalizados, como fotos e documentos da época para embasar as aulas e traçar paralelos com o atual momento.
“É interessante que os alunos saibam que, desde os anos 1930, o combate à fome sempre esteve no horizonte dos nossos pensadores, intelectuais e políticos. É um processo longo que vivenciamos entre idas e vindas, e que precisa estar sempre em pauta na sociedade como um todo”, completa Rômulo Andrade.
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