“É fome!”: como navegar pela desigualdade de acesso aos alimentos nas aulas

Um grupo de pessoas procura por comida em um caminhão de lixo em área nobre de Fortaleza (CE). Aos gritos de “Por favor! É fome!”, um homem implora por alimentos entre prédios residenciais em Brasília (DF). Dezenas de pessoas, muitas delas com crianças, esperam em uma grande fila por doação de ossos em um açougue na periferia de Cuiabá (MT). 

Cenas como essas viralizaram nas últimas semanas e chamaram atenção para uma dura realidade: o aumento da fome no Brasil. 

Para se ter ideia, nos últimos meses de 2020 mais de 19 milhões de brasileiros passaram fome e mais da metade dos domicílios no país enfrentaram algum grau de insegurança alimentar. É o que mostra o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PenSSAN), divulgado em abril deste ano.

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Outros agravantes são o alto índice de desemprego, com mais de 14 milhões de pessoas desempregadas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a alta no preço dos alimentos, a redução do valor do auxílio emergencial e o enfrentamento caótico de uma pandemia que matou mais de 610 mil brasileiros. 

É o que defende o advogado Ariel de Castro Alves, especialista em Direitos Humanos. “O Brasil vive uma grave crise social, econômica e humanitária, já que durante a pandemia muitas pessoas perderam suas fontes de renda, o que afetou diretamente milhares de crianças e adolescentes que dependem de seus familiares”, observa. Além disso, muitas famílias também perderam renda com a morte dos seus entes, situação que se relaciona com a ampliação da fome, da miséria e da insegurança alimentar, gerando, inclusive, orfandade de milhares de crianças e adolescentes no país, segundo o doutor Ariel. 

Como levar a questão da fome para a sala de aula? 

“Será a calamidade da fome um fenômeno natural, inerente à própria vida, uma contingência irremovível como a morte? Ou será a fome uma praga social criada pelo próprio homem?” A reflexão, retirada do livro Geopolítica da Fome (1953), de Josué de Castro, segue atual.

Em um momento histórico com tantas mazelas sociais, a fome e a insegurança alimentar são problemas que impactam milhares de estudantes, especialmente nas escolas públicas. Por ser uma questão delicada para muitos alunos, é importante que o professor tenha sensibilidade na hora de abordar a fome e a insegurança alimentar durante as aulas, seja de Geografia, História, Matemática ou qualquer outro componente curricular. 

Sueli Furlan, doutora em Geografia Física e professora assistente de Geografia na Universidade de São Paulo (USP), pontua que o docente deve, em primeiro lugar, perceber a situação dos estudantes e considerar a realidade da comunidade na qual estão inseridos. 

“É preciso abordar essas temáticas dentro dos conteúdos de maneira contextualizada socialmente e levar a uma compreensão de que momento é este que estamos vivendo”, ressalta.

Glossário

Fome. Sensação desconfortável ou dolorosa causada por energia insuficiente da alimentação. Privação de alimentos; não comer calorias suficientes. Usado aqui de forma intercambiável com subalimentação (crônica). Medido pela prevalência de subalimentação.

Insegurança alimentar moderada. Um estado de incerteza sobre a capacidade de obter alimentos; risco de pular refeições ou ver a comida acabar; sendo forçado a comprometer a qualidade nutricional e/ou quantidade dos alimentos consumidos.

Insegurança alimentar grave. Ficar sem comida; fome experimentada; no extremo, ficar sem comer por um dia ou mais.

Má nutrição. Condição associada a deficiências, excessos ou desequilíbrios no consumo de macro e/ou micronutrientes. Por exemplo, desnutrição e obesidade são formas de má nutrição. O atrofiamento ou o atraso no crescimento infantil são indicadores de subnutrição.

Fonte: FAO

Ao mesmo tempo, é interessante considerar que a escola pode ser um núcleo que, por meio de algumas práticas reveladoras de repertório alimentar, promove uma educação alimentar, procurando alimentos mais acessíveis, mas igualmente nutritivos para trabalhar essa segurança. 

“Por outro lado, também é possível que a escola seja protagonista, no sentido de garantir essa segurança alimentar através da merenda e do suporte que pode dar a esses estudantes e suas famílias”, sugere a especialista. 

Ariel de Castro Alves lembra que a alimentação é fundamental para o desenvolvimento, para a saúde e para a dignidade das crianças e adolescentes. “A criança com fome, com a barriga vazia, não consegue estudar. Por isso, é necessário que as escolas reforcem suas merendas e colaborem com a situação dessas famílias”, avalia o jurista. 

Para ele, a escola deve, inclusive, fazer uma busca ativa dos estudantes que não voltaram a frequentar as escolas para verificar se estão passando fome ou vivendo em insegurança alimentar junto às suas famílias. Vale considerar, ainda, que muitas crianças e adolescentes que frequentam a escola durante a semana ficam sem alimentação durante o fim de semana, já que não tem merenda. 

“A escola tem um papel central, tanto de garantir uma alimentação de qualidade aos seus estudantes, reforçando a merenda e a atuação de nutricionistas, como tem também o papel de verificar as situações em que as famílias estão, se em condições de pobreza, de miséria ou mesmo passando fome”, reforça. 

Já para o historiador Rômulo de Paula Andrade, doutor em História das Ciências pela Casa de Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), os professores devem, também, chamar a atenção dos alunos para o problema da fome enquanto drama presente na história do Brasil. “O enfrentamento só ocorre com a mobilização da sociedade civil. Por isso, o professor pode incentivar os alunos a pensar, do ponto de vista local, quais são as carestias das populações e o que pode ser feito em torno disso”, propõe ele, que é pesquisador sobre o tema.

Saiba Mais

Livro

Geografia da Fome: A fome no Brasil - Josué de Castro (1946)
Escrito pelo médico e pesquisador, essa obra inaugurou os estudos contemporâneos sobre a fome no país, tema definido por ele como “delicado e perigoso”. Indicado três vezes ao Prêmio Nobel, o autor foi presidente da FAO e embaixador do Brasil na ONU. 

Quarto de Despejo - Diário de uma favelada - Carolina Maria de Jesus (Ed. Ática)
“Como é horrível ver um filho comer e perguntar: 'Tem mais?' Esta pergunta, 'tem mais?', fica oscilando dentro do cérebro de uma mãe que olha as panela e não tem mais". Escrito na década de 1950, o livro descreve em formato de diário as mazelas e a fome dos marginalizados na favela do Canindé, na capital paulista. A leitura ganha ainda mais atualidade diante do aumento da fome no Brasil. Ao longo das páginas, a fome está sempre presente.

Podcast

Fome, Uma Coisa Horrorosa, o Joio e o Trigo
O episódio, produzido pelo site especializado em questões alimentares, entrevista a cantora Elza Soares, que viveu a fome na pele, e Elisabetta Recine, professora da Universidade de Brasília e ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). 

Documentário

Histórias da Fome no Brasil (2018)
Produzido pela Ação da Cidadania, o documentário faz uma cronologia da fome no país. O período abarcado pela produção audiovisual vai dos tempos do Brasil Colônia até as políticas públicas recentes que culminaram na saída do Brasil do Mapa da Fome em 2014. 

Materiais

Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19