História Antiga: o estranhamento que educa
Leia o artigo do professor Guilherme Moerbeck sobre como os conteúdos acerca desse período ampliam o olhar dos alunos
Há uma pergunta que os historiadores não se cansam de fazer: por que devemos ensinar a História? Essa pergunta não tem a ver com uma possível dúvida se a disciplina deve ou não ser ensinada, mas expressa a necessidade de haver clareza sobre as razões que justificam o nosso empenho numa sala de 6º ano.
Falo do 6º ano porque ele impõe um desafio especial aos professores de História: lidar com as chamadas Histórias pré-modernas - em particular, a Antiga. Após as alterações curriculares da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), Grécia, Roma Antiga e Idade Média aparecem dispostas no 6º ano do Fundamental, enquanto os conteúdos relativos à História do Antigo Egito e outros do Oriente Próximo ficaram no 5º ano.
Diante disso, é natural que o professor se sinta inseguro ou até questione a pertinência desses conteúdos. Mas é importante, primeiro, desmitificar a ideia de que é preciso ser um especialista em História Antiga para se preparar uma bela aula. Segundo, mostrar ao professor que a História Antiga pode ser tão importante como qualquer outro período para desenvolver no aluno o pensamento histórico - isto é, o conjunto de habilidades e de ferramentas necessárias para que eles possam, de forma cada vez mais autônoma, interpretar a História de maneira crítica e consciente.
Há alguns dias, comecei a escrever um artigo no qual me questiono sobre o porquê de se estudar a História Antiga nas escolas. Aqui, não vou entrar nos pormenores de toda a minha discussão, mas pretendo chamar atenção de vocês sobre alguns pontos que me parecem centrais em minha resposta positiva – sim, acho que devemos estudar a História Antiga!
Um dos principais problemas que perpassam a formação docente é a permanência de uma cultura academicista na escola. Ficamos tentando reproduzir dentro do universo escolar o modo como aprendemos nas faculdades de História. Felizmente, isso vem mudando bastante na última década, mas é preciso lembrar que formar um profissional chamado historiador é muito diferente de formar um aluno. Na escola, a pretensão é oferecer às pessoas a oportunidade de se desenvolverem em seus aspectos cognitivos, emocionais e técnicos.
Durante muitas décadas, o estudo da História voltava-se ao acúmulo quantitativo de informações. Fazia sentido saber, de cor e salteado, nomes de presidentes da República, eventos etc. Em tese, já não se entende mais dessa forma o valor de ensinar e aprender a História, porém os conteúdos construídos nos manuais escolares como narrativas fechadas sobre o passado ainda mobilizam a ação e a disputa entre historiadores e profissionais da educação em torno do excessivo valor dado aos conteúdos, em regra, cobrados em avaliações tradicionais, tais como testes, provas e mesmo no Enem.
Desde a década de 1990, mas com absorção muito lenta nos debates sobre a didática da História, se começou a pensar menos na centralidade dos conteúdos e mais naquilo que foi chamado de pensamento, literacia ou consciência histórica. Guardadas as suas devidas diferenças, esses conceitos estão ligados à ideia de que devemos ir além do que apenas ensinar uma narrativa coerente sobre o passado. Assim, se deveria perceber como o aluno aprende a disciplina e se concentrar no desenvolvimento de habilidades básicas, aquelas que todo estudante deve aprender na escola. Nenhuma dessas habilidades está ligada a um conteúdo específico, mas a todos que constam nos currículos.
Por meio tanto da História Antiga quanto da Contemporânea, devemos ensinar os alunos: 1) Desenvolver o sentido da empatia histórica; 2) Entender os contextos de produção dos períodos estudados; 3) Compreender as mudanças e permanências que atravessam os processos históricos e conceitos; 4) Agir de maneira problematizadora em relação às fontes – elemento central ao trabalho do professor numa aula de história; 5) Compreender que a produção histórica requer escolhas e que está baseada em uma profunda análise crítica de fontes dos mais variados suportes – escrito, imagético, sonoro, visual, material etc. Ensinar por este prisma significa perguntar que tipo de história queremos ensinar e entender que a autopercepção no tempo é uma necessidade humana central.
O papel do professor passa a ser mostrar ao aluno que a investigação e o pensamento histórico não são atos naturais, dependem do aprendizado de uma cuidadosa metodologia interpretativa. Se fizermos tudo isso, os próprios alunos perceberão que a narrativa centrada em um narrador onisciente, como se lê em boa parte dos livros didáticos, é fruto de escolhas do autor, que muitas das vezes não estão explícitas.
Nesse sentido, a História Antiga pode ser um elemento-chave. As sociedades contemporâneas estão manchadas pelo ódio étnico, pelo racismo, pela discriminação religiosa, pela estigmatização vinculada às opções sexuais, pela violência contra a mulher e pela exclusão social. A História deve ser uma importante ferramenta na compreensão de como chegamos até aqui. As metodologias investigativas podem tornar nossos jovens mais conscientes da complexidade do mundo, bem como perceberem os perigos de discursos simplistas e dogmáticos.
É curiosa e extremamente eficaz a forma como a História Antiga pode ajudar a meninada a imaginar mundos maravilhosos, e mesmo a sair de sua própria realidade às vezes brutal. As mitologias grega, romana, suméria e egípcia, entre outras, possuem um sem-número de narrativas que podem dar asas à imaginação, ao mesmo tempo que falam de ações heroicas, medos, tabus, rituais e divisões sociais. É só escolher por onde ir! E isso não serve apenas para a religião. Pense nos sistemas políticos, nas divisões do trabalho, nas relações étnicas e de gênero.
Por outro lado, nós não podemos construir em sala de aula uma falsa sensação de identificação com pessoas e sociedades que existiram há milhares de anos, apenas para que esse jogo seja mais fácil ao entendimento do aluno. Um choque cultural aqui e ali é ótimo para nos lembrarmos de que não estamos sozinhos neste mundo chamado Brasil e que a existência humana no planeta não é uma projeção da vontade ou do ego de cada um.
Um exemplo interessante é o seguinte: era comum na religião mesopotâmica que as estátuas dos deuses, após passarem por processos ritualísticos, fossem vistas não como uma representação do deus, mas como o próprio deus, concreto, materializado. A partir daquele momento, a divindade podia falar, agir, enfim, a estátua tinha sido animada, era o próprio deus. Os mesopotâmicos eram ingênuos e não viam que uma estátua era apenas um pedaço de pedra, ou enxergavam o mundo e as possibilidades nele contidas de maneira diferente da nossa?
Se perdermos a oportunidade de mostrar essa outra possibilidade de ver o mundo em funcionamento, deixaremos de lado um dos grandes trunfos da História Antiga, a de criar a sensação da estranheza. É claro que também podemos encontrar similaridades entre o passado e o presente, mas temos de tomar cuidado com o presentismo, que interpreta as sociedades pretéritas a partir dos interesses das pessoas do mundo de hoje.
De toda maneira, a História Antiga pode ser útil para que os alunos compreendam que milhares de pessoas acreditavam em vários deuses, e que isso foi mais regra do que exceção durante milhares de anos. A História Antiga pode ajudar os alunos a olharem os rituais de libações, oblações e sacrifícios como uma forma de ligação com o mundo invisível. Eles podem perceber também o poder e a força inequívoca de deusas: como Atena, Ártemis, Deméter - só para ficar no mundo grego. E, com certeza, mais importante do que isso é estimular a compreensão e o respeito por visões diferentes, religiões de matrizes africanas e indígenas. Se isso acontecer, a História Antiga terá fomentado não apenas um mundo da imaginação literária - o que já seria incrível -, mas a compreensão da historicidade das sociedades, o que pode abrir caminhos para se viver um mundo contemporâneo de menos conflitos e mais entendimento religioso.
Enfim, a História Antiga pode ter um papel de enorme relevância em nossos dias. A Educação à cidadania não deve se prestar à reprodução, à moda de uma educação cívico-moral. O essencial é desenvolver a capacidade de criticar, refletir e debater.
Guilherme Moerbeck é professor adjunto em História da Arte na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), professor de História Antiga e Ensino de História no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV) e atua na rede pública do Rio de Janeiro.
Mais sobre esse tema