Beatriz Ferraz: “A pandemia foi oportunidade para os pais valorizarem a Educação Infantil”
A especialista argumenta que as famílias puderam entender a dificuldade de educar uma criança e como é importante ter profissionais capazes de apoiar os pequenos em seu desenvolvimento
Foram muitas as mudanças vivenciadas por professores, famílias e crianças desde que a Organização Mundial da Saúde declarou, em março de 2020, a pandemia do novo coronavírus. O fechamento de creches e escolas modificou a rotina de todos, exigindo uma nova forma de levar a escola para a vida dos pequenos. Para conversar sobre esse período desafiador, NOVA ESCOLA convidou a psicóloga e doutora em Educação Beatriz Ferraz, sócia-diretora da Escola de Educadores e diretora pedagógica da Escola de Educação Infantil Global Me.
Na entrevista abaixo, a educadora destaca os principais desafios vividos pelos professores, pais e crianças no contexto do trabalho virtual e como a tecnologia pode se tornar um instrumento para a construção de vínculo entre a escola e os pais.
NOVA ESCOLA: Como você avalia a presença da família na vida escolar das crianças dentro desse contexto de pandemia e atividades remotas?
BEATRIZ FERRAZ: Um ponto que acaba sendo unânime, tanto na rede pública quanto na rede privada, é que a pandemia trouxe maior proximidade da escola com a família. Na Educação Infantil, sempre tivemos como princípio, previsto inclusive em legislação, da existência de uma educação compartilhada e complementar. A família e a escola são complementares no processo de aprendizagem das crianças, mas isso nunca ganhou tanta concretude como agora. Antes, tudo ficava restrito à família participar da reunião ou ao período de adaptação das crianças no ambiente escolar. Agora tivemos a oportunidade de realmente viver a experiência da complementaridade. E essa experiência necessariamente implica um conhecimento sobre os parceiros: a escola podendo dizer o que faz e o porquê faz; e a família podendo dizer o que eles fazem e como fazem. Tudo isso ocorreu a partir dessa troca, os dois olhando juntos para a aprendizagem das crianças.
Os pais têm conseguido perceber a grande quantidade de coisas importantes que as crianças aprendem neste momento, sempre a partir de uma abordagem das atividades com um olhar mais intencional, mais cuidadoso, com a pergunta, com o diálogo que eles podem fazer com as crianças. Tudo isso tem sido uma experiência bonita para eles, porque vão se dando conta de que as aprendizagens que pareciam tão naturais, na verdade, vêm de um trabalho feito a partir do brincar.
Por outro lado, para os professores também foi um desafio enorme se deparar com a representação que os pais têm de escola. Muitos deles têm na memória uma escolaridade de Ensino Fundamental, em que as crianças iam para escola, ficavam sentadas na cadeira para aprender a ler, escrever e contar. Muitos deles não entendem que a Educação Infantil possibilita que as crianças aprendam também de outra maneira, de uma forma muito mais lúdica, muito mais atrativa, a partir das ações, das brincadeiras, das investigações que elas vão fazendo. Os professores precisaram ainda pensar no contexto que as famílias estavam vivendo com o cuidado de não passar para elas a responsabilidade de ser escola.
Podemos dizer que essa troca entre a escola e os responsáveis permite que eles compreendam melhor o papel da Educação Infantil no desenvolvimento dos seus filhos?
A pandemia trouxe de maneira muito forte a oportunidade dos pais reverem os seus valores sobre a educação na infância. Estamos vendo pais em casa com as crianças percebendo como não é fácil educar uma criança. Ao mesmo tempo eles começam a perceber como poder contar com profissionais que entendem, que fazem as propostas adequadas, possibilita à criança evoluir num ritmo muito diferente.
Nesse contexto de pandemia, quais os direitos das crianças previstos na BNCC, quais saberes se destacam e quais ficam mais comprometidos?
É importante lembrar que as crianças não têm só perdas, elas têm também ganhos. Quando o ganho pode existir? A partir da convivência com os familiares, elas vivenciam interações mais próximas de seus pais e responsáveis e aprendem valores da cultura da família. Esses são pontos positivos que estão sendo relacionados com os direitos.
Aprender num contexto de vínculo profundo com a família é muito positivo. Além dessa experiência e das brincadeiras, atividades de casa como arrumar a cama, se responsabilizar por ajudar a arrumar a mesa, participar do momento de preparar uma refeição são experiências importantes e que em um contexto fora da pandemia poderiam não acontecer.
Por outro lado, existe um ponto muito importante, que é o convívio social, de encontros, de relação, de interação, que a escola proporciona e possibilita aprendizagens estruturantes nesse momento da vida das crianças. Quando a criança está em casa e em isolamento, ela diminui muito as oportunidades de estar com outras crianças e vivenciar situações como, abrir mão de segurar o brinquedo na hora que ela quer, ter que aguentar um pouquinho a fome para comer junto com todo mundo ou ainda esperar a sua vez para falar porque tem várias crianças querendo contar alguma coisa.
A dinâmica do grupo familiar é muito diferente do grupo escolar, por exemplo, na questão da criança se expressar. Em casa, como há uma familiaridade muito grande com os nossos filhos, se ele aponta para a água, eu já sei o que ele quer, então eu vou lá e pego para ele. Na escola a gente tem a intencionalidade. O professor pergunta para a criança: “Ah, o que você tá querendo? Você quer um copo d’água? Então eu vou te dar um copo d'água”. O professor começa a colocar em linguagem aquilo que a criança ainda não consegue expressar, que ela expressa pelo corpo.
Outro ponto é que na escola a criança tem contato com diferentes materiais e atividades, como a argila, a massinha, a dança, a dramatização. Tudo isso são linguagens que a escola apresenta para a criança como uma forma de ela se expressar e aprender. Isso fica limitado no ambiente familiar
Como você imagina o retorno das atividades presenciais?
Entendo que a escola tem que se organizar para acolher as crianças e as famílias. As crianças retornarão com muita vontade de estar junto, de compartilhar as experiências que elas viveram em casa, então é muito importante que a gente possa pensar nesses contextos, que são contextos para que o professor possa acolher cada criança na sua individualidade e garantir que elas interajam bastante entre elas.
Outra coisa de grande importância são os espaços livres, tanto do ponto de vista da saúde quanto de proporcionar a elas esse tipo de experiência. Esse universo, por si só, traz muitas aprendizagens para as crianças: ver a chuva, a terra, tocar na areia, misturar a areia com água, todas essas atividades mais exploratórias ficaram limitadas com a pandemia e o isolamento social.
Também é essencial conversar com as crianças sobre o que está acontecendo, o que é o coronavírus, como se proteger dele e, portanto, quais serão os novos hábitos na escola. Tudo isso sem dar margem para fantasia, para o medo, para o preconceito. Podemos falar para ajudar as crianças a entenderem e criarem os mecanismos de defesa para se protegerem, interiorizando uma nova cultura, que é um pouco isso que vamos ter de trabalhar.
Vai ser um duplo trabalho? Não são só as crianças, imagino que os educadores terão uma demanda muito grande por parte de pais ansiosos e com medo.
Antes de qualquer retorno, o trabalho intensivo têm de ser feito com os familiares nessa mesma linha. Precisamos ajudar as famílias a entenderem sobre o vírus, como se prevenir, o que é importante que aconteça na escola e em casa para que esse retorno possa se dar com a maior segurança e bem-estar para todos. Todas essas orientações precisam ser trabalhadas antes do retorno e com todos os adultos: as famílias, os professores e os funcionários. Eles também precisam estar seguros para poder acolher o outro.
E não adianta fazer essa preparação uma semana antes do retorno. Já tinha de ter começado. Se estamos pensando em voltar em novembro, os encontros on-line, individuais ou da forma que for possível, já deviam ter começado, mais para orientar e também tranquilizar os familiares e os professores. Se o seu pai se sente inseguro, como é que a criança vai ficar na escola? Ela também vai ficar insegura, ela sente isso. Por isso é muito importante que o pai e o professor se sintam seguros.
Apesar de cada escola ter usado ou optado por usar uma tecnologia diferente da outra, como você avalia isso na Educação Infantil? Como vê a tecnologia dentro desse contexto?
Existem vertentes diferentes para olhar para esse assunto. Um grande aprendizado que tivemos foi entender o uso dessas tecnologias que possibilitam o contato. Podemos fazer chamadas de vídeo com as crianças, com as famílias, o que permitiu que parte das atividades não fosse feita completamente a distância.
A distância estava no espaço, mas não no tempo. Há uma discussão nesse sentido: o quanto essas tecnologias ajudaram as crianças (e também as famílias) na ideia da continuidade, de se sentir pertencente a um grupo, no vínculo com o professor e com as outras crianças.
Com a tecnologia, essa narrativa da vida delas não se perdeu. Mas devemos tomar cuidado com a ideia de que ela pode em algum momento substituir o ensino presencial. De jeito nenhum! Sabemos o quanto o uso das telas faz com que as crianças deixem de viver experiências e, nessa idade, a criança aprende na ação, na relação. É muito importante que a gente garanta os espaços de convivência.
Por outro lado, vejo esse momento como uma oportunidade de trazer para a Educação Infantil recursos com os quais não trabalhávamos antes, como o uso de um data show para expor a imagem de um artista ou de um parque. Isso também não significa que aos 2 anos de idade vou apresentar o aplicativo de um museu para a criança, não é disso que estamos falando, mas de usá-la em uma situação de brincadeira, no faz de conta. No relacionamento com as família pode ser uma abertura legal, uma vez que ela trouxe muita proximidade porque permite uma velocidade para comunicação muito maior.
Mais sobre esse tema