1989-2020

Aulas de Língua Portuguesa, contos e Helena: os legados da professora Camilla Graciano

Escritora assídua, dedicada às letras dentro e fora de sala de aula, ela ensinava a norma culta com base nos diálogos cotidianos de seus alunos

Em 2020, a professora ganhou pela segunda vez o concurso de microcontos no qual se inscrevia todo ano. Ilustração: Marcella Tamayo

Quem tem medo da norma culta? Não os alunos da professora Camilla Graciano - para quem a Língua Portuguesa era tão apaixonante que valia as horas a menos de seu sono e as horas a mais preparando um conteúdo que os fizesse sentir um pouquinho daquela paixão. “Ela nunca entraria em sala sem uma aula com interação, sem aproximar a língua dos livros da que os estudantes falavam”, diz a amiga e professora Kesia dos Santos. “Ia ensinar oração subordinada? Pois buscava na realidade deles, nos seus diálogos cotidianos, a melhor forma de ensinar.” Assim que percebeu que os alunos gostavam de meme, passou a trazê-los para as aulas. Dizia: “Vou levá-los à norma culta, mas por meio da linguagem popular”. Tarefa grata para quem amava as palavras. 

Camilla nasceu em Anápolis (GO), mais velha de dois irmãos. Sonho de quase toda criança, cresceram comendo todo sorvete do mundo - os pais tinham uma sorveteria. Aluna dedicada e leitora voraz, colecionava notas 10 nos boletins, sobretudo em português, sua disciplina preferida. Quando crescesse, trabalharia com a escrita, dizia: ou seria jornalista ou daria aulas de língua. Na hora do vestibular, optou pelas letras. “Sempre gostou de escrever histórias”, diz o viúvo, Wesmair Graciano. “Quando o Orkut surgiu, Camilla passou a postar seus pequenos contos na rede, o que seguiu fazendo com a chegada do Facebook e a criação de um blog. E assim sua escrita solitária ganhou um pouco o mundo - e o amigo acabou virando fã. 

Ela conheceu Wesmair, o futuro marido, em 2002, numa garagem onde o pai, pastor da igreja, foi liderar um ponto de pregação evangélica - quando um núcleo de oração tem início. “Um dia ela chegou num Voyage com a família, linda, linda, linda”, conta ele. “Quando ela ia Jesus ficava mais brilhante, o culto ficava alegre e meu desejo era que as horas passassem mais devagar.” O pai pregava, mas ficava de olho na filha, rememora. Ficaram amigos e era só isso. Até que, nove anos depois, o rapaz passou na casa do pastor e convidou a menina para ir ao cinema. Viram um filme de Harry Potter, beijaram-se, começaram a namorar. Logo se casariam.

Ainda na faculdade, Camilla passou a dar aula em escolas estaduais e em cursinhos pré-vestibular de Anápolis. Depois seguiram escolas privadas e cursos supletivos. Em 2012, passou com facilidade no concurso para lecionar na rede municipal. Ensinou em várias escolas, mas se conectou mesmo com a Lions Anhanguera. Foi lá onde, em 2014, venceu, com um de seus alunos, a etapa regional da Olimpíada de Língua Portuguesa. “Sempre incentivava os alunos a escrever e aproveitava as chances de demonstrar o talento deles, por isso amava a olimpíada”, reflete Kesia.  

“Ela estava realmente muito entusiasmada”, diz Vitor Eneas, o aluno que escreveu a crônica sobre memórias literárias que levou Camilla ao paroxismo da alegria como docente e à viagem a Maceió. “Ela tomou todas as providências necessárias e me acompanhou em cada passo dessa viagem. Era tão alegre e tão cheia de vida! Da olimpíada, ficou na memória a felicidade estampada em seu rosto. Ela mostrou para nós que a educação é o caminho para a vitória.”

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Acima de tudo, “tinha uma proposta completamente inovadora e contemporânea” de ensino e de escrita, diz a colega Edna Eloi. “Ela organizava oficinas de leitura e de produção de texto, eventos teatrais, produção de crônicas, de poesia, tudo de forma contemporânea. Chegou a levar vários autores aqui de Anápolis para conversar com os alunos na escola.” Assim, eles puderam ler os textos na presença de quem os escreveu, apaixonar-se pela língua e pela escrita na fonte. Incentivo maior à leitura - e à escrita - não seria possível. 

Camilla escrevia todo santo dia. “Ela tinha esse talento para se expressar em poucas palavras”, lembra o marido. Por isso escrevia microcontos, que inscrevia em concursos diversos. Mas também criava contos, poesia - ou as aulas que preparava com afinco: seu hobby era escrever. “Às vezes ela passava a madrugada escrevendo, na cama, até no celular. “Enquanto não terminava, não dormia. Depois me pedia pra ler. ‘Vê se tá bom, amor!’ E sempre estava. Era tão minuciosa que cortava com a precisão de um cirurgião até os cartazes da escola ou os convites da igreja.”

“Nunca vi a Camilla alterar o tom de voz com ninguém, e olha que a voz dela era baixa, doce”, diz Kesia. O problema, reflete o marido, eram as condições da educação pública. Passar 40 horas por semana expondo conteúdos em salas com até 40 alunos foi impactando sua voz. Ela estava começando a ter calos nas cordas vocais, de tanto que se esforçava para passar o conteúdo aos adolescentes do 9º ano. Como cantava na igreja, em casamentos de amigos e conhecidos e até em eventos do município, Camilla estava preocupada. Cantava música evangélica em português, gospel em inglês e Coldplay em casa, nos ouvidos dele.

Mas a verdade é que ela tinha um domínio impressionante do português, diz a amiga. “Ela sabia as nuances, conhecia todos os caminhos da língua.” Tanto que foi chamada para trabalhar na adequação do novo currículo municipal de Anápolis à Base Nacional Comum Curricular. O que os alunos deveriam aprender de Língua Portuguesa, e como, passava por ela. “Destacou-se tanto”, diz Kesia, que foi chamada para ser assessora do mesmo componente curricular na prefeitura. “Foi a coroação de sua carreira”, explica Wesmair. “Ela estava muito grata.” 

Neste ano, as novidades foram muitas. “2020 foi um ano maravilhoso pra ela”, opina Wesmair. “Além da assessoria, ela estava radiante que nós finalmente terminamos o projeto da nossa casa, que ela desenhou nos mínimos detalhes: cada canto, cada móvel.” Em março, descobriu que estava grávida - foi no dia do seu próprio aniversário que a notícia chegou. “Ela estava de três meses. O sonho de ela era ser mãe, então foi mais um presente, o maior de todos.” O quarto da criança, o berço, o carrinho, as roupinhas: estava tudo comprado e do jeito dela.

Daí, dia 3 de agosto, as colegas fizeram um chá de fraldas pra ela - que estava de quase oito meses. Em meio aos presentes estava alguém contaminado com a covid-19. Dias depois, Camilla sentiu-se mal, e logo foi internada. A equipe médica recomendou a indução do parto. A filhinha nasceu com saúde, os pulmões de Camilla pareciam melhorar. Sedada, dia 21, ela ganhou pela segunda vez o concurso de microcontos no qual se inscrevia todo ano. A palavra do dia era “refugiado”. 

Seu microconto foi pessoal e universal: “Contrações. Intervalos cada vez menores. Na tenda hospitalar improvisada no meio do campo, ela aguardava o médico que falava tudo enrolado. ‘Fica aí, meu amor! Aqui fora tem frio, fome, é triste!’ Suplicava ao pequeno refugiado em seu ventre.” Foi com essas poucas palavras que ganhou dos outros 500 candidatos. “Mas ela nunca soube que tinha sido premiada”, lamenta Wesmair. Camilla morreu no dia seguinte, 22 de agosto. Na hora do enterro, o caminho ao cemitério foi tomado de carros - era a última homenagem possível de alunos, ex-alunos e amigos. O último e maior legado de sua vida se chama Helena. 


O texto acima integra a edição especial de Nova Escola Box "Vida, saudade e legado: os educadores que partiram em 2020". Durante o mês de outubro, vamos contar a história de dez grandes educadores e funcionários que inspiraram alunos, colegas e cidades ao longo de suas vidas, interrompidas, infelizmente, pela covid-19. É nossa forma de dizer "muito obrigado" pelas lições deixadas dentro e fora de sala de aula e lembrar aos que seguem a vocação de lecionar o poder transformador da Educação para tantos brasileiros, muitos deles em luto por perdas humanas inestimáveis. 

Confira os textos que já publicamos

20/10 - As lições de Matemática e de superação de Valter Paulino, que pode virar nome de escola
16/10 - "Rodrigo Braga, o professor de Biologia que lutou para conscientizar sua escola do risco da pandemia"
15/10 - “Gosto do que faço, amo meus alunos”: a paixão da professora Maria Aparecida pela escola

14/10 - Em suas aulas, Saulo Basílio guardava e transmitia a cultura do povo indígena terena
08/10 - Aguinaldo Marinho, o professor que levava a alma encantadora das ruas a seus alunos

Créditos deste Box

Reportagem: Willian Vieira
Produção: Marcelo Valadares
Edição: Miguel Martins e Pedro Annunciato

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