Mais que asas à imaginação, Lucineia deu um avião de possibilidades às crianças
A diretora sempre estimulou os pequenos a alçarem voos cada vez mais altos, como no episódio em que instalou uma miniatura de aeronave na área externa de sua escola
Um dia a diretora percebeu que os pequenos da pré-escola queriam voar. Foi no ano passado, no CMEI Erondy Silvério, em Curitiba. E não se tratava de uma metáfora da educação, benvinda num ambiente de ensino que prima por dar asas à imaginação infantil. Elas tinham um propósito claro desde que o projeto da ONG Vila Sésamo os incentivou a delinear seus sonhos e colocá-los no papel. E no papel surgiram aviões. “Tia, eu quero voar”, foi a frase que começou a pipocar nas salas. Mas como dar conta desse sonho? Como bancar a 48 crianças de famílias humildes de escola pública uma viagem de avião?
Entre o sonho e a realidade existe o mundo, pensou Lucineia Drohomereschi. E a diretora foi atrás de transformar a ideia em projeto e logo em uma conquista para os alunos. Conseguiu patrocínio para levá-las a um aeroclube, entrar num avião, conversar com os pilotos -- e também para construir um aeroplano para que as crianças pudessem entrar e voar -- mesmo que na imaginação. Ela não descansou enquanto não encontrou um artesão para construir o avião em tamanho (quase) real, que instalou na parte externa da escola para deleite dos pequenos. Desde então, no CMEI Erondy Silvério as crianças podem voar.
Lucineia era mulher de pôr a mão na massa e fazer acontecer. Sua rotina era gerir funcionários e alunos, elaborar projetos e conquistar ajuda para vê-los concretizados. Mas ela também pegava no pincel para pintar a escola e na pá para mexer na horta. E, sobretudo, gastava tempo para convencer os pais a fazerem o mesmo -- ver a escola dos filhos não como um local para deixá-los enquanto trabalham por uma vida melhor, mas como a própria porta de entrada desta vida.
Uma história que era também sua. Então fora mesmo costureira, manicure, secretária, diarista e fotógrafa? “Era uma pessoa Bombril, de mil e uma utilidades, eu brincava com ela”, diz a filha, Letícia. “Era uma batalhadora, nunca acomodada.” Sua trajetória comprovava o epíteto.
Terceira de quatro irmãos, Lucineia nasceu em Jandaia do Sul, interior do Paraná. O pai era alfaiate, a mãe, costureira. Já menina cuidava da casa enquanto os pais iam trabalhar. A família chegou a se mudar para São Paulo em busca de uma vida melhor -- que conseguiram --, mas a poluição da metrópole e a bronquite de Lucineia não se entenderam; acabaram se instalando em Curitiba, onde ela faria sua catequese e viraria logo catequista da igreja Nossa Senhora Auxiliadora. Foi a primeira vez que ensinou crianças. E amou.
Quando a irmã foi fazer magistério e a convidou, ela pensou: por que não? Nem sabia se queria lecionar. “Mas sempre gostou muito de conversar, era simpática, de sorriso fácil, fazia amizades com facilidade, e sempre foi mais fotogênica do que eu”, diz a irmã, Luciene. Não foi dessa vez: acabou fazendo curso de manicure e trabalhando com unhas. Foi secretária e diarista. E a vida seguiu. Um dia estava com as amigas num carro, que bateu em outro, e neste estava Gilson. O desconhecido fez questão de acompanhá-la ao hospital. Tempos depois, casaram-se. “Tudo para ela parecia fácil e simples”, diz a irmã. A festa do casamento foi na casa dos pais, o vestido de noiva a mãe quem costurou. “Dizia que tudo ia dar certo, e no fim dava mesmo.”
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Depois de casar, teve três filhos e passou a ficar em casa com eles. Sem trabalhar fora, aprendeu crochê, tricô, patchwork. “Não havia um curso que ela visse na frente e não fizesse”, diz a filha Até que não aguentou ficar sem trabalhar e voltou à vida de diarista -- o que mudou sua vida para sempre. Na casa de uma senhora rica de Curitiba, após um chá da tarde com talheres de prata, a dona deu falta de uma suposta colher. E acusou as duas empregadas. “Elas passaram horas revirando o lixo em busca dessa bendita colher, uma humilhação que ela não esqueceria jamais”, diz a filha. O marido da senhora chegou, lembrou que a colher havia sido extraviada anos atrás e a desculpa forçada não bastou para tirar da cabeça de Lucineia que ela merecia uma vida melhor.
Fez faculdade de Letras, passou num concurso para lecionar na região metropolitana de Curitiba. Uma década depois, tendo dado aulas e dirigido escolas, virou concursada na capital. Ensinou por anos a fio, até surgir um convite para dirigir um CMEI novamente. “Sempre teve gosto por administrar, a sala de aula só já não a satisfazia”, conta a filha. Quando se ofereceu para assumir o Erondy Silvério, CMEI com cinco vezes mais crianças e profissionais, a família perguntou: por que sair da zona de conforto? “Mas ela queria estar à frente de novos projetos, queria sempre mais”, diz a filha. “Então quanto maior a escola, maior o desafio, melhor.”
No Erondy Silvério, ela se sentia em casa. A forma como conseguia engajar as famílias na compra de brinquedos ou em mutirões para plantar hortaliças -- enfim, a fazer parte da rotina escolar -- era sua maior conquista. Pois era com os pais presentes na escola que se construíam as memórias afetivas, tão importantes para o ensino e a vida, dizia a pedagoga Lucineia (que ainda achava tempo para ser ativa à frente do Conselho do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e no Conselho Municipal da Educação de Curitiba). Com ela, as mães aprenderam a costurar bonecas para presentear os filhos no Natal, o que acabou virando fonte de renda para muitas delas. Sempre era possível dar um passo além rumo ao que se sonha, dizia.
Em junho deste ano, com as aulas apenas televisionadas, a forma que encontrou para abraçar os pequenos foi confeccionar 250 maçãs do amor, uma para cada, e enviar junto com a cesta básica adereçada aos pais e responsáveis. “Ela queria dar para elas algum tipo de toque, de amor”, diz Letícia, “então ficamos até de noite fazendo maçãs.” Lucineia comprou ainda equipamentos e passou a costurar máscaras para doação durante a pandemia. Nada podia parar. Para quem, anos antes, transformou a paixão por fotografar em nova fonte de renda -- formando-se fotógrafa e abrindo seu “studio Lucy Rocha fotografias” para registrar casamentos e batizados --, sonho era para virar realidade. Sempre. O dela, além do ensino, das crianças e da família era poder viver na praia. “Adorava a brisa do mar”, conta a sobrinha Bruna. “O sonho dela era comprar uma casa em Porto Seguro.”
Lucineia adoeceu no fim de agosto. No dia 30, aniversário de Gilson, ele a levou novamente ao hospital, mas dessa vez não houve festa, nem ela voltaria para casa. Morreu de Covid-19 em 13 de setembro. Deixou três filhos, um deles prestes a se tornar médico (outro sonho dela), e um neto. O viúvo, que por décadas foi mecânico de ônibus, hoje cursa engenharia, com ajuda dela. “Era a engrenagem principal da família”, diz Letícia, a filha mais velha, educadora infantil que agora assume o bastão deixado por ela. Será a nova diretora da Erondy Silvério, onde segue, impávido, o avião em miniatura que ela conseguiu criar -- pronto para receber centenas de novos meninos e meninas prontos, com ajuda dela, a alçar novos voos na vida.
O texto acima integra a edição especial de Nova Escola Box "Vida, saudade e legado: os educadores que partiram em 2020". Durante o mês de outubro, vamos contar a história de dez grandes educadores e funcionários que inspiraram alunos, colegas e cidades ao longo de suas vidas, interrompidas, infelizmente, pela covid-19. É nossa forma de dizer "muito obrigado" pelas lições deixadas dentro e fora de sala de aula e lembrar aos que seguem a vocação de lecionar o poder transformador da Educação para tantos brasileiros, muitos deles em luto por perdas humanas inestimáveis.
Confira os textos que já publicamos
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Créditos deste Box
Reportagem: Willian Vieira
Produção: Marcelo Valadares
Edição: Miguel Martins e Pedro Annunciato
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