1955-2020

“Gosto do que faço, amo meus alunos”: a paixão da professora Maria Aparecida pelo ensino

Em Sertãozinho, Cida batalhou para realizar seu sonho de lecionar e construiu uma relação carinhosa com colegas e estudantes de todas as etapas

Cida trabalhou em roça de algodão e como faxineira antes de realizar o sonho de virar professora. Ilustração: Marcella Tamayo/NOVA ESCOLA 

Quem chegava na escola municipal Silvio Sarti, em Sertãozinho, interior de São Paulo, logo ouvia aquela voz forte que dominava o espaço e dava vida aonde chegasse. Fosse ensinando às crianças o bê-á-bá, a ler e escrever, a somar e dividir, fosse contando histórias e incentivando as colegas nos intervalos, uma maçã sempre à mão - a eloquente professora Cida era senhora do lugar. “Era a mãezona da escola”, diz a amiga Maria Luiza de Moraes, que trabalhou com ela entre aquelas paredes por 27 anos seguidos. “Ninguém ficava indiferente à Cida, era impossível. Com ela, todo mundo ria, todo mundo sorria. Quando chegava, tudo se transformava.” 

Os pais já sabiam que Maria Aparecida nascera para lecionar. Terceira de nove irmãos, ainda menina conseguia a proeza de trabalhar na roça de algodão da família, em Lucélia (SP), caminhar quatro quilômetros até a escola e voltar, chegar em casa e cuidar dos irmãos - e ensiná-los os princípios da matemática e da leitura. Era já uma professorinha. Aos 12 anos foi para Ribeirão Preto morar com a tia e trabalhar de babá. À noite, estudava: queria seguir sua vocação. Mas os pais careciam de recursos, então foi preciso ganhar a vida antes.

Cida foi para São Paulo trabalhar numa fábrica dos Matarazzo como faxineira, e lá conheceu o marido e pai do primeiro filho. Ele morreu, ela se apaixonou de novo e se mudaram para Sertãozinho. Cida teve mais três filhos, mas nunca desistiu do que acreditava ser seu destino, lecionar. Então, finalmente, foi fazer faculdade de pedagogia: “Toda noite ela ia de ônibus até Ribeirão Preto ter aula”, conta a amiga. Fez ainda outra graduação, de história. E foi a mesma coisa: toda noite deixava a comida dos filhos, dava as direções ao marido e ia estudar.

Desde que pôs os pés numa escola para dar aula, Cida trabalhou muito. Típica professora de escola pública, que se dedica até não dar mais, Cida lecionava de manhã, de tarde e de noite. Deu aula em creche, no Ensino Fundamental e no Médio, no Magistério e em supletivo para jovens e adultos. Às vezes, vários deles ao mesmo tempo. “Saía de manhã e às vezes só voltava à noite”, relembra a filha Isadora. “Mas amava o que fazia, era amor mesmo. Eu até tinha ciúmes”, diz, sorrindo, ao lembrar. “Na missa, sempre vinham as aluninhas com cartinhas na mão pra ela.” 

Na caixa de memórias guardadas pela mãe, Isadora encontrou uma pilha dessas cartinhas. “Eu te amo, professora”, é o que a maioria dizia. Mas havia também, entre cartas e fotos de alunos, um texto escrito à mão com a letra dela: Cida agradecia a Deus por ter nascido com saúde, ter se casado com quem amava, ter tido filhos saudáveis. E agradecia - não seria diferente - pela profissão escolhida. “Gosto do que faço. Amo meus alunos.” 

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Quem por quase três décadas dividiu salas com ela diz que seu jeito de ensinar era de uma entrega total. “Era uma mãezona para as crianças”, conta Malu. “Às vezes, no ciclo I do fundamental, eu pegava metade das disciplinas e ela, a outra. E eu via como ela amava essas crianças. Se explicava na lousa e a criança não entendia, ela chamava na mesa ou ia até a carteira explicar. Era tão espontânea que às vezes se fazia de criança para ensinar, como se tivesse a mesma idade.” Cida entendia de História, sua especialidade, e até dera aulas de didática no Magistério. Mas gostava era de ensinar a somar e subtrair, a multiplicar e dividir. “Mãe, ninguém mais vai na carteira ensinar nada”, dizia a filha. Mas ela ia. E adorava.

Às vezes chegava em casa pesarosa: um aluninho confessara que em casa não tinha comida, diz a filha. Então lá ia a professora levar mantimentos para o pequeno, roupas, o que tivesse. Deus lhe havia dado tanto, então por que não ajudar? Cida era muito religiosa, não perdia uma missa de domingo. “Era sagrado pra ela”, diz Malu. “Todo dia ela levantava às 5 da manhã para fazer suas orações.” E todo ano fazia sua peregrinação a Aparecida - pois era devota de Nossa Senhora. 

Cida era a mãezona também dos colegas. “Todo dia ela comia uma, duas maçãs e ficava puxando a orelha de quem não comia comida de verdade, como eu. Dizia: ‘Malu, você precisa comer fruta, para cuidar da sua voz.’ Ela se importava com a gente.” Quando a amiga, finalmente, se aposentou, tentou retribuir. “Aposenta, Cida”, dizia Malu. O mesmo pedia a família. Mas ela gostava era de dar aula. Chegou a pedir a contagem de tempo à prefeitura e descobriu que poderia se aposentar. Mas continuou trabalhando e se aprimorando. Fez pós-graduações e diversos cursos de extensão. Em outubro terminaria seu último, o de educação inclusiva. Não deu tempo.

Cida contraiu o coronavírus e foi internada, juntamente com o filho mais velho. Ambos morreram de covid-19. Várias mensagens começaram a chegar à família, muitas vindas dos alunos. Eram as cartinhas de antigamente atualizadas.

A escola Silvio Sarti já andava silenciosa por causa da pandemia, com as aulas dadas remotamente. Quando o ensino presencial voltar, porém, jamais será o mesmo. Vai imperar um silêncio distinto - a ausência da voz, das histórias alegres, da gargalhada gostosa da professora Cida.


O texto acima integra a edição especial de Nova Escola Box "Vida, saudade e legado: os educadores que partiram em 2020". Durante o mês de outubro, vamos contar a história de dez grandes educadores e funcionários que inspiraram alunos, colegas e cidades ao longo de suas vidas, interrompidas, infelizmente, pela covid-19. É nossa forma de dizer "muito obrigado" pelas lições deixadas dentro e fora de sala de aula e lembrar aos que seguem a vocação de lecionar o poder transformador da Educação para tantos brasileiros, muitos deles em luto por perdas humanas inestimáveis. 

Confira os textos que já publicamos

14/10 - Em suas aulas, Saulo Basílio guardava e transmitia a cultura do povo indígena terena
08/10 - Aguinaldo Marinho, o professor que levava a alma encantadora das ruas a seus alunos

Créditos deste Box

Reportagem: Willian Vieira
Produção: Marcelo Valadares
Edição: Miguel Martins e Pedro Annunciato

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