ENTREVISTA

Tágides Mello: “As emoções devem vir antes do pedagógico e do cognitivo”

A coordenadora de Educação Infantil e especialista em afetividade, Tágides Mello, defende que o desenvolvimento do vínculo com as crianças deve ser prioridade na pandemia

O distanciamento vai influenciar no desenvolvimento psicológico e social das crianças, alerta Tágides. Foto: Patrícia Stavis

A situação ímpar em que a pandemia nos colocou trouxe a necessidade de repensar a maneira como nos relacionamos. Na Educação Infantil, isso gerou reflexos específicos, pois se trata de uma etapa importante para o desenvolvimento das habilidades socioemocionais das crianças. Os professores viram-se obrigados a criar estratégias para manter o vínculo e demonstrar afeto em meio ao ensino remoto. Um desafio que ainda não terminou, pois o retorno às atividades presenciais inclui o distanciamento físico, entre outros protocolos de segurança e saúde. 

Para debater o assunto, tendo em vista as experiências do período de isolamento e as reflexões sobre o que pode vir, NOVA ESCOLA entrevistou Tágides Renata Mello, coordenadora de Educação Infantil da Escola Educare, professora do curso de Pedagogia do Centro Universitário de São Roque e especialista no tema da afetividade no desenvolvimento infantil. 

NOVA ESCOLA: O que é afetividade e como ela contribui para o desenvolvimento humano?  

TÁGIDES MELLO: Afeto é algo muito sério, pois falar de afeto é falar de saúde mental. Afeto não está relacionado exclusivamente a ser carinhoso, dar colo e abraço. É mais amplo do que isso. É dar atenção a como afetamos o outro, que pode ser de maneira positiva ou negativa. Há vários estudos que trazem a discussão de como a afetividade influencia no desenvolvimento humano em três aspectos: motivação, segurança e autoestima. A criança afetada de maneira positiva vai se sentir mais segura para colocar seus pontos de vista e também em relação ao aprendizado. Por exemplo, erro é uma coisa que a criança tem medo. Se a postura do professor é de acolher esse erro com afeto, a criança vai entender que pode errar, pois o erro faz parte da construção do aprendizado

Qual o impacto do distanciamento físico e social no desenvolvimento das crianças? 

É bom frisar que, de forma inquestionável, a pandemia ameaça a saúde física e mental da população no geral. E, por mais que muitos pensem que as crianças não estão percebendo [o que está ocorrendo] e possam até estar gostando de ficar em casa com a família, com certeza o distanciamento vai influenciar no desenvolvimento psicológico e, principalmente, social delas. As crianças estão sendo privadas da necessária e indispensável socialização com os pares. É imprescindível a interação com o outro, o brincar junto, a troca. São nesses momentos que ocorrem aprendizados significativos para o desenvolvimento humano. Eles permitem trabalhar a cooperação, o convívio com as diferenças, o compartilhamento de decisões, a negociação de conflitos e o exercício de controle de impulsos, entre outras habilidades. 

As crianças estão sendo privadas dessas construções que ocorrem na escola com o apoio do professor. Por mais que estejam tendo ensino remoto, essa questão é limitada. Também tem a linguagem oral. Li um artigo, nesta semana, sobre como as crianças estão, neste período, perdendo muito do desenvolvimento da linguagem oral. Por mais que os pais conversem em casa, eles jamais vão conseguir suprir a quantidade de interações, de construções e de situações de fala que ocorrem na escola. Outro ponto que deve ser muito forte é a dependência excessiva dos pais, com quem eles estão ficando um período grande. Então, no retorno, é possível que isso seja sentido e que eles tenham vontade de ficar agarrados com os pais. Temos de ter esse olhar e tentar nos colocar no lugar da criança.

Como os professores têm agido para amenizar esses impactos e construir uma relação afetuosa, mesmo a distância? 

Como coordenadora, o ponto que mais pensei [nesses últimos meses] foi como manter o vínculo afetivo com as crianças. O que combinamos foi de trabalhar a escuta. Isso porque, na Educação Infantil, o principal, neste período, não é a questão pedagógica, são as emoções. Elas precisam ser pensadas em primeiro lugar, antes do pedagógico e do cognitivo. Então, os encontros on-line, por exemplo, devem ser voltados para manter o vínculo entre a professora e o grupo e entre as crianças. É o momento de elas poderem compartilhar experiências e falar. Os educadores podem estimular que as crianças falem um pouco de sentimentos por meio de dinâmicas como a leitura de histórias infantis que envolvam alguma emoção. E ele possa, depois, perguntar se elas se sentiram como o personagem. 

Essa escuta é uma maneira de demonstrar afeto positivo. Outra iniciativa é tentar retomar coisas significativas para a turma antes da pandemia. Pode ser, por exemplo, uma música que elas adoravam. Isso vai fortalecer o vínculo e a memória afetiva e propiciar também que as crianças falem. O mais importante, neste período, é que elas não guardem o que estão sentindo. O feedback individual também tem nos mostrado ajuda a manter o vínculo. Essa atenção não deixa de ser uma forma de afeto, por ser uma demonstração de que se está olhando e escutando a criança. 

Como os educadores podem lidar com a frustração de não conseguir manter contato e vínculos com todas as crianças e famílias da turma? 

Essa frustração está existindo. Temos famílias de vários perfis e umas participam, outras não. O que tenho dito é para o professor ter a consciência de que ele não pode abraçar o mundo. E não sofrer por isso. Lembrar que ele está fazendo o melhor possível dentro das condições dadas a ele no momento, o que inclui lidar com o distanciamento. 

Pensando em vínculo e afetividade entre professores e crianças, quais serão os principais desafios no retorno dos encontros e atividades presenciais? 

É tudo ainda incerto, mas temos conversado muito, gestores e professores. Primeiro é ter em mente que a criança que está voltando para a escola não é mais a mesma que saiu. Elas voltarão inseguras e, provavelmente, muito apegadas aos pais, por terem passado todo esse período com eles. Então, vai ser preciso uma tolerância muito grande. Nós tínhamos um período de adaptação todo começo de ano, mas, desta vez, ele vai ter de ser maior e muito bem planejado. As palavras-chave vão ser acolhimento, escuta e segurança. Costumo dizer que a escuta só acontece se o adulto, o professor for capaz de se abrir ao mundo da criança. Escutar não é só ouvir o que ela está dizendo. É perceber, é enxergar, é estar atento, é dar voz a ela. É a maneira como me relaciono com a criança, como me coloco e como respondo a ela. Então, tem de estar aberto. Vamos precisar também elaborar estratégias para tornar o ambiente escolar acolhedor. Colocar fotos da família na sala, por exemplo. Pensar em maneiras lúdicas para orientar em relação aos protocolos [de segurança e saúde] para que eles não sejam aterrorizantes, mas sim, percebidos como algo mais leve, que vai entrar na rotina da escola. 

Como os professores podem se preparar para enfrentar esses desafios e também elaborar as próprias emoções? 

O professor precisa ter consciência da importância do trabalho dele neste momento. E o desafio da escuta é também dos gestores, de acolher os medos e as angústias dos docentes. O professor também necessita sentir-se seguro na escola em que atua. De as instituições conseguirem organizar toda a estrutura para seguir protocolos. Só assim eles vão poder orientar e apoiar as crianças e as famílias. Então, essa parte de orientação precisa ser planejada. Outro ponto importante é não ter ansiedade com conteúdos pedagógicos, porque, em geral, o professor acha que não está ensinando se não está trabalhando essa parte. Mas, nesse retorno, ela não é o principal. Primeiro vamos ter de lidar com a questão dos protocolos de saúde, com a escuta e o acolhimento. E para fazer uma escuta atenta o educador não pode estar ansioso. Se estiver, não vai dar conta da demanda das crianças. 

Há alguma prática utilizada para fortalecer vínculos e demonstrar afeto que deveria permanecer após a volta dos encontros presenciais? 

Com relação às crianças, penso que não. Elas estarão na escola com o professor e lá será o local de fortalecimento de vínculo e demonstração de afeto. O local da escuta. Mas uma coisa que não podemos perder é a relação com as famílias. Houve uma aproximação delas com a escola como nunca vimos antes. Apesar do distanciamento físico deste ano, muitas se aproximaram da parte pedagógica e passaram a perceber melhor o trabalho da escola, o processo de ensino. E devemos pensar em como manter e fortalecer isso.

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