Sandra Eckschmidt: “Há muita aprendizagem acontecendo dentro de casa”
Coordenadora de pesquisa do Território do Brincar, a educadora fala como a observação das dinâmicas familiares durante a pandemia pode inspirar o planejamento de propostas e comenta desafios e oportunidades do estímulo ao brincar espontâneo
Observação cuidadosa, investigação e horas de escuta atenta. Foi do outro lado da tela de um computador ou pelo telefone que Sandra Eckschmidt se conectou com a rotina de brincadeiras das crianças dentro de casa em várias metrópoles durante a pandemia. Coordenadora de pesquisa do Território do Brincar, projeto liderado por Renata Meirelles e David Reeks, a educadora também coordena uma escola de Educação Infantil e a Formação em Pedagogia Waldorf em Florianópolis (SC). De lá, Sandra conversou com NOVA ESCOLA sobre a riqueza do material coletado para o filme Brincar em Casa – resultado de pesquisa com 55 famílias de diversos contextos e países (é possível assistir ao longa gratuitamente por aqui) – e as alegrias e os desafios para o brincar espontâneo no ambiente escolar.
NOVA ESCOLA - O brincar espontâneo proporciona que tipo de oportunidade para a criança?
SANDRA ECKSCHMIDT – A maior delas é que a criança exercita sua força de vontade, que é uma capacidade enfraquecida. Quem se acostuma a receber estímulos externos torna-se um adulto passivo, que pouco transforma. Também vale lembrar que autonomia não se ensina, é a criança que a conquista e faz isso por meio do brincar. Na pandemia, com o tempo em casa, a criança entrou em espaços antes proibidos, como a cozinha, junto com os pais, foi pegando objetos e alimentos... para muitos foi uma descoberta e ao mesmo tempo fez perceber o quanto vínhamos abafando essas possibilidades.
Quais são os maiores desafios para que o brincar espontâneo aconteça?
O mais complicado, tanto para pais quanto para professores, é que o brincar espontâneo não se controla, você não sabe para onde ele vai. Isso traz instabilidade e requer flexibilidade do adulto. A mãe precisa abrir mão de uma casa sempre organizada e liberar o sofá para virar playground, manter a calma e deixar a criança experimentar. No caso da escola, uma das dificuldades é que no brincar espontâneo o aprendizado não é mensurável. Mesmo estudando o assunto, as faculdades de pedagogia ainda formam professores que dirigem as crianças. Na prática, o começo é mais difícil, pois é preciso aprender a dispensar o controle. E dá trabalho proporcionar um ambiente criativo e observar ativamente as escolhas e as criações das crianças, é uma perspectiva aberta e diversa.
Como ocorreu a investigação para o filme Brincar em Casa e quais seus principais objetivos?
O pedido do Instituto Alana foi de uma pesquisa sobre o brincar na cidade, mas aí veio a pandemia e, pela primeira vez na história do Território do Brincar, a observação não foi feita por nós, mas explorou o olhar dos pais, com quem conduzimos entrevistas e longas conversas. O objetivo era encontrar o brincar espontâneo em casa e para isso era preciso ir conhecendo a moradia, a estrutura da família, o ritmo da rotina e, assim, descobrir que a criança gostava de brincar atrás da máquina de lavar quando a mãe estava na cozinha... O brincar espontâneo passa um pouco despercebido e foi bonito de ver que cada família é singular, mas o brincar da criança tinha uma recorrência. O brincar de casinha e de cabana foi um ponto comum, fruto da vontade de transformar e recriar o que se está vivendo.
Como as imagens e narrativas do filme podem inspirar os profissionais da Educação Infantil?
Espiar para dentro da casa das famílias traz um pouco mais de contexto, mesmo em meio a tanta diversidade, e estimula a se desprender do currículo habitual. Além disso, aumenta o entendimento do que é possível sugerir como atividade. Há muita aprendizagem acontecendo dentro de casa.
Quais são os maiores desafios de pais e professores na pandemia?
Nos centros urbanos, a educação estava terceirizada para a escola, afastando educadores e pais. Só que educar é tarefa de todos, o aprendizado acontece com os pais, na escola, na praça, no parque, no cinema. Mas a parceria entre as famílias e os educadores não foi valorizada ou fomentada, nos estruturamos assim como sociedade. A pandemia virou isso do avesso, pois obrigou a reconstruir essa relação. Tanto a professora dependia da disponibilidade dos pais para realizar as atividades quanto os pais começaram a questionar coisas feitas há anos na escola, mas que passavam despercebidas. Então sinto que é uma oportunidade para famílias e professores trabalharem bem juntos, e isso implica escuta atenta e questionamentos.
Na pesquisa perceberam-se dificuldades para o brincar em casa das crianças com deficiência?
Qualquer criança com deficiência tem uma agenda intensa de terapias e cuidados que a obriga a se deslocar bastante e isso constitui um desgaste. Não ter de sair de casa trouxe um alívio e uma leveza para essas crianças e suas mães, e a leveza é amiga da espontaneidade. Alargar o tempo trouxe novas possibilidades. Pelos relatos, percebeu-se a alegria de ficar em casa mais relaxado, puseram música, dançaram juntos, deitaram no chão para rolar...
Quais foram as diferenças observadas entre os países pesquisados?
Deu para perceber como as grandes cidades em países da Europa e da América do Norte são mais amigáveis, mais humanas, oferecem oportunidades de contato da natureza sem a multidão. Era chocante o contraste, as famílias contavam que faziam trilha em um parque com caminhos amplos, outras citavam um passeio até o lago... e aqui no Brasil tinha mãe em apartamento que dizia ter comprado um vaso de planta preocupada em garantir algo da natureza no distanciamento. A maior diferença do brincar da criança pequena surgiu entre casa ou apartamento, pois as possibilidades em um quintal são outras.
O que chamou mais sua atenção durante a pesquisa?
Foi muito bonito ver a alegria das famílias ao descobrirem o brincar espontâneo dentro de casa, e as possibilidades criativas e de expressão de suas crianças. Em vez de reclamar da bagunça, eles revelavam seu contentamento. E quando os pequenos perceberam que os pais estavam interessados no que estavam fazendo, aumentou a interação. Foi um alento!
O que recomenda aos profissionais da Educação Infantil para que abram mais espaço para o brincar livre na escola?
Penso que cada professor deveria revisitar sua própria infância, e mesmo que tenha tido momentos difíceis, resgatar como seu "eu criança" lidava com eles. Se puder ter um diário, quando uma criança fizer algo na escola e ele cutucar a própria memória, vai perceber que o corpo lembra como era se sujar de lama, pular corda ou outras brincadeiras e terá mais empatia, fazendo intervenções menos diretivas. Para o educador, vale sempre a pena ficar sensível ao frescor que a infância tem.
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