Os desafios para construir rotinas após mais de um ano de pandemia
Com a retomada gradual de atividades presenciais, organização do dia a dia das crianças deve ser feita coletivamente, com trocas constantes entre educadores e famílias, e muita flexibilidade
Silvia Fuertes, hoje formadora de professores e coordenadores pedagógicos pela Comunidade Educativa CEDAC, avisou à turma – ainda nos seus tempos de professora – que o dia na escola estava chegando ao fim e que eles iriam embora depois da contação de histórias. Uma das crianças insistiu durante toda a atividade: “Conta logo a história”.
“Ele queria ir embora, e como sabia que isso só iria acontecer depois da história, ficou ansioso com essa parte da atividade”, conta Silvia. “A rotina é superimportante na vida das crianças porque as ajuda a organizarem a noção de tempo, que elas não têm muito bem definida, e também dá segurança”, afirma.
Essa organização e conforto que a rotina incide na vida das crianças é interna e externa. Interna como na história de Silvia, em que a criança precisou lidar com a ansiedade, já que entendeu que estar na escola implica uma série de atividades. E externa porque ela organiza a vida coletiva na instituição de ensino. Ou seja, em determinado momento os brinquedos serão guardados, porque todos vão comer o lanche, por exemplo.
No entanto, e se a professora perceber que, ao longo dessa brincadeira, um menino sempre muito tímido conseguiu, enfim, interagir com a turma? O que é melhor: manter os combinados da rotina ou flexibilizar levando em conta situações específicas?
Mariana Americano, formadora de educadores do Instituto Avisa Lá, é categórica ao dizer que as situações de aprendizados estão em todos os momentos e que “não é recomendado engessar a rotina, sem levar em conta o tempo e as necessidades da criança”.
Vale lembrar que o tempo das crianças não é o tempo do relógio – aliás, elas nem sabem bem o que é isso –, e também não é o tempo da escola. O ambiente escolar é, de fato, de acordo com a formadora, um lugar apropriado para arrumar a rotina dos pequenos, “mas, de modo geral, os professores ficam amarrados ao tempo do relógio, e podem interromper uma situação de aprendizado para cumprir um cronograma rígido”.
A solução, afirmam Mariana e Silvia, está na escuta da criança. Será que é possível, em vez de parar a brincadeira, naquele dia específico, fazer o lanche ali mesmo? Talvez. E se tem algo que quase um ano e meio de pandemia ensinou a todos é que é preciso ser criativo e flexível para não perder de vista os objetivos de aprendizagem, e da Educação em geral.
Rotina - uma construção coletiva
Agora, com a tendência de as escolas retomarem parcialmente as turmas para as atividades presenciais, os educadores podem perceber que alguns hábitos e combinados estão bagunçados e desgastados. Afinal, muitas famílias também tiveram suas vidas (e rotina) reviradas. É possível determinar como deve ser a alimentação, o soninho e o horário de fazer as atividades da criança que ainda está entre a casa e a escola?
A atuação dos professores, como ficou mais evidente ao longo da pandemia, tem limites. “A escola não deve determinar como tem de ser a dinâmica dentro das casas. É preciso respeitar as outras pessoas da família, e compreender que cada uma tem uma realidade. O que vale aqui é muita escuta. Ouvir essa família, entender como ela está se organizando, e ajudá-la no que ela precisar”, afirma Mariana.
O primeiro passo, sugere a formadora Sílvia, é justamente conversar com as famílias sobre a importância da rotina na vida das crianças, dos benefícios em criar bons hábitos, da necessidade de constância e de como isso ajuda a criança a se autorregular (leia aqui outras dicas para orientar pais e responsáveis com a rotina). Para criar esse diálogo, o caminho é aproveitar a relação construída entre escola e família ao longo desse período de distanciamento social para orientar em relação a ajustes para facilitar a readaptação dos pequenos à rotina presencial na escola (confira aqui mais dicas), tendo em vista que muitos estão ansiosos e inseguros com a retomada.
Essas informações também ajudarão na construção das rotinas dentro das escolas. Gestores e professores ainda estão sentindo como essas crianças que ficaram um ano e meio em casa estão chegando nas instituições, quais adaptações são necessárias para as novas turmas, sedentas por brincadeiras e com muitas marcas da pandemia. Será que haverá alguma dificuldade de interação por parte das crianças que não tiveram oportunidades de conviver com outras crianças? Ou de separação dos pais pelo fato de terem ficado tanto tempo apenas no núcleo familiar? O momento exige, além de flexibilidade, muita troca entre as equipes docente e gestora para definir como será a organização na instituição.
Um ponto parece certo: as necessidades emocionais merecem atenção redobrada. “A rotina sempre é algo que precisa ser pensado previamente. E não genericamente, mas para aquele ano, para aquela turma, para aquelas crianças especificamente”, complementa Mariana. Até por isso, deve ser revista com regularidade para, se for o caso, fazer ajustes.
É hora de determinar uma rotina para as crianças, mas que deve ser construída coletivamente a partir das necessidades do grupo.
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