Para repensar a prática

Como discutir acidentes domésticos com as famílias

Com as crianças ficando mais tempo dentro de casa, os riscos aumentam. Instigá-las e envolvê-las em atividades lúdicas pode facilitar o aprendizado

90% dos acidentes domésticos poderiam ter sido evitados com medidas de prevenção, por isso é importante conversar com as famílias sobre o assunto. Ilustração: Rodrigo Damati/NOVA ESCOLA

A combinação de um maior tempo dentro de casa, durante o isolamento imposto pela pandemia da Covid-19, com um espaço limitado para brincar e a curiosidade das crianças pode ser perigoso? Não necessariamente. Isso porque, apesar de esses elementos potencializarem os riscos de acidentes, que são a principal causa de morte entre crianças de 1 a 14 anos, estudos apontam que 90% desses eventos podem ser evitados com medidas de prevenção. Daí a importância de redobrar a atenção para os cuidados que garantem a segurança em casa. 

O Ministério da Saúde contabilizou 3.318 mortes de crianças em 2018 decorrentes de quedas, queimaduras, trânsito, afogamento e intoxicação, entre outras lesões não intencionais. Os acidentes também lideram as estatísticas de internações hospitalares: foram 112,6 mil no ano passado, segundo o sistema de processamento e divulgação do governo federal, mais atualizado que o relatório sobre óbitos. Esses números superam os casos de doenças e violência. 

Ainda não há dados oficiais sobre aumento de acidentes durante a quarentena, mas o histórico de mortes de crianças aponta para maior risco de ocorrências quando elas permanecem mais tempo em casa. “Em média, 30% dos óbitos acontecem nos meses de janeiro, julho e dezembro, quando elas estão em férias. E, querendo ou não, esses períodos se assemelham em muito ao da quarentena”, diz Eduarda Marsili, gestora de projetos e políticas públicas da ONG Criança Segura, que trabalha com prevenção de acidentes. Em 2018, por exemplo, 36% das mortes em razão de quedas ocorreram nas férias. Por queimaduras, foram 40%. 

“A gente não pode, de jeito nenhum, repetir os números de anos anteriores. Os hospitais estão ficando lotados com pessoas infectadas pela covid-19. Assim, mesmo quem conseguir encontrar vaga hospitalar corre risco de que alguém da família seja contaminado”, alerta Eduarda. No caso de queimaduras, em que o atendimento pode significar meses de internação, o perigo é maior. “Quando a pessoa é queimada, ela fica imunodeprimida, ou seja, com a imunidade baixa, e vai direto para o grupo de risco. Então, além de ter de passar por um tratamento doloroso e longo, a criança fica mais vulnerável”, ressalta (para evitar acidentes com fogo, veja a reportagem que integra este box).

Ninguém espera que a criança fique quietinha dentro de casa durante todo o isolamento. Mas o adulto deve se responsabilizar por fazer desse um lugar seguro - e, neste box, você encontrará cuidados para evitar diferentes tipos de acidentes. “Temos de adaptar o ambiente para que elas possam ser curiosas, brincar e descobrir o mundo do jeito delas”, diz Eduarda. 

E qual o papel dos educadores na prevenção de acidentes domésticos? Eles atuam como interlocutores dos dois públicos fundamentais: as crianças e os pais e responsáveis. Assim, podem orientar quais medidas adotar para ampliar a segurança nas casas. 

O essencial é lembrar as famílias da necessidade de supervisão dos adultos. “A autonomia das crianças cresce conforme ficam mais velhas. Elas amadurecem e começam a ter mais independência e responsabilidade. Mas isso não significa pensar que elas podem fazer tudo sozinhas”, diz Tania Zamataro, médica pediatra e presidente do Departamento de Segurança da Criança e do Adolescente da Sociedade de Pediatria de São Paulo. “Falta vivência a elas para evitar que certos acidentes ocorram. Um jovem ou adulto sabe, por exemplo, que ao acabar de usar o ferro, ele demora a esfriar. Seja porque já colocou a mão e descobriu que queima ou viu alguém fazer isso. A criança pode pensar: ‘Já desligou, por que estaria quente?’ Aí vai lá e coloca a mão”, completa a médica. 

Para falar de segurança doméstica com as crianças

A prevenção fica mais fácil quando as crianças também são informadas dos perigos. A discussão de acidentes em casa está, inclusive, presente na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Existe uma habilidade de Ciências no 2º ano de Ensino Fundamental I que trata do assunto. A professora Roberta Braga Manes da Silva, coordenadora pedagógica de Educação Infantil e Fundamental 1 do Colégio Santa Helena, em São Paulo, desenvolveu uma sequência de planos de aula para NOVA ESCOLA, em que oferece sugestões de atividades. Você pode conferir aqui

Para Roberta, neste período de isolamento, o professor pode adaptar esses conteúdos para trabalhar não apenas com as turmas do 2º ano, mas também, com as do 1º e as do 3º ano. São atividades que podem ser enviadas para as famílias desenvolverem com as crianças ou serem realizadas pelos professores, a depender do contexto de cada escola – se estão ou não conseguindo organizar aulas virtuais, por exemplo.

“Dizer apenas que machuca, corta, queima ou mata não é suficiente. A criança precisa interagir com aquele conteúdo para de fato aprender. Então, é necessário instigá-la com questionamentos ou envolvê-las em atividades lúdicas”, diz Roberta. Uma estratégia para adaptar o plano que indica discussão em grupo, por exemplo, pode ser sugerir que as famílias convidem os alunos para fazer um tour pela casa e ir perguntando quais perigos eles acreditam existir em cada cômodo. A ideia é de que, na conversa, eles discutam quais riscos correm se utilizarem de maneira inadequada o ambiente (ou os objetos presentes nele) e quais os motivos de ser perigoso. 

Duas outras propostas envolvem teatro e jogo de trilha. “É difícil falar de acidentes com a criança porque dificilmente ela consegue se colocar naquele lugar de perigo. Ela não tem maturidade para isso. Então, utilizando a brincadeira o conteúdo fica mais acessível”, explica Eduarda em relação ao uso de jogos. E completa: “No faz de conta, é mais fácil esse processo de se colocar no lugar do outro, porque quem está em perigo não é a criança, mas o personagem. E pode até ocorrer uma proposta de inversão de papéis, com a criança na posição de ensinar algo para os pais, quando, na verdade, é ela quem estará interiorizando aquilo.”

Há também a possibilidade de fazer uma sala de aula invertida, em que primeiro os pais ou responsáveis realizam as atividades (tour e conversa, teatro, jogo etc.) e depois o professor discute com as crianças as descobertas e sistematiza a aprendizagem. Em todos os caminhos, o importante é que elas participem ativamente do processo. 

Para mais informações sobre prevenção de acidentes, a ONG Criança Segura oferece um curso on-line e gratuito. Acesse aqui.

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