PARA REPENSAR A PRÁTICA

Se quem brinca vai para o Fundamental 1, a brincadeira tem de ir junto

Especialistas explicam a importância de se preservar o brincar como linguagem e prática de liberdade de crianças do 1º ao 5º ano

Que tal trazer os brinquedos das crianças para suas aulas? - Rodrigo Damatti / NOVA ESCOLA

Brincar é mais do que um direito, é a linguagem da criança; é o lugar de expressão na infância. É o modo que os pequenos encontram para comunicar suas primeiras impressões, apropriar-se de seu corpo e do mundo. “Por isso é que toda criança, independentemente de questões culturais e socioeconômicas, brinca”, comenta a consultora da área de Educação do Instituto Alana, Ana Cláudia Leite. 

É na brincadeira que a criança percebe o espaço, elabora seus interesses e diz o que está sentindo. “Tudo isso tem a ver com o autoconhecimento, que é a ferramenta essencial para o exercício da vida. É comum perguntarmos para um adulto do que ele gosta, o que ele quer fazer, e ele não saber. O brincar não é qualquer coisa na constituição do sujeito”, reflete Ana Cláudia. 

Na escola 

Nas Diretrizes Curriculares e na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o brincar aparece como forma de promover o desenvolvimento infantil. Não é pouca coisa. Na Educação Infantil, a brincadeira é, ao lado das interações, um dos eixos estruturantes da Base, e o “brincar” é um dos seis direitos de aprendizagem e do desenvolvimento.

No Ensino Fundamental 1, a Base continua a incorporar as brincadeiras de forma destacada nas habilidades previstas para cada componente curricular. Ainda assim, é muito comum que os brinquedos e jogos fiquem cada vez mais restritos ao recreio e ao tempo livre dos alunos e sejam menos trabalhados em atividades didáticas. 

Por isso, é importante lembrar que o desenvolvimento infantil não se restringe à Educação Infantil, mas se estende para toda a infância, até a criança completar 12 anos. Não à toa, o universo das brincadeiras  está muito presente na BNCC de 1º a 5º ano. Em Língua Portuguesa, por exemplo, há habilidades relacionadas à leitura de regras de brincadeiras e a resenha crítica baseada em vídeos sobre jogos eletrônicos para o 5º ano. Em Arte e Educação Física, está prevista a identificação e o exercício de brincadeiras de diferentes matizes culturais. Já os brinquedos de outros tempos e outros locais são um dos temas de História e Geografia. Não faltam exemplos. 

Transição 

“O primeiro ano do Ensino Fundamental é a continuação da segunda fase da Educação Infantil. É preciso pensar na organização da sala e da rotina, e garantir o tempo do brincar independente e dos brinquedos que são de escolha da criança”, recomenda Selene Coletti, colunista de NOVA ESCOLA e professora com experiência nas duas etapas.

À medida que os anos vão passando, em cada etapa, o lugar do brinquedo e da brincadeira mudam, afinal, o brincalhão, que é a criança, também muda. Muda também o papel do adulto no universo do brincar. Nos primeiros anos da Educação Infantil, as crianças brincam de imitar os adultos e interpretar papéis para compreender suas funções, e, por isso, precisam da presença mais intensa dos mais velhos na brincadeira. Já no Fundamental, essa presença não é mais tão necessária, mas, segundo especialistas, deixá-las brincar de forma independente é a melhor caminho. 

“Não só deixar, mas promover esse brincar que não está atrelado a objetivos de conteúdo. Dar espaço para a brincadeira como linguagem. Isso significa dar tempo para o recreio, organizar espaços que favoreçam a criatividade, a imaginação”, defende Ana Claudia. 

Faz de conta 

E é na imaginação, na brincadeira do faz de conta, que começa na Educação Infantil e deve prosseguir pelo Fundamental, que o professor ou o adulto responsável poderá observar as emoções, as dificuldades, os interesses, e as demandas da criança. 

Foi o que aconteceu em uma brincadeira que a neta de Selene propos. “Ela me chamou para brincar de faz de conta. Sentamos eu, ela e a boneca no sofá , que na narrativa dela era um carro, e dirigimos juntas até o shopping, e ela foi repetindo as mesmas coisas que faz quando vai ao shopping. Ela ali estava tentando resolver a frustração de não poder ir mais ao local. Nas brincadeiras as crianças nos dizem coisas que valem ouro.”

O brincar, portanto, permite desenvolver o protagonismo, uma vez que ela é a autora de suas ações.  Quando o professor observa esse brincar, consegue avaliar importantes aspectos do desenvolvimento cognitivo,  motor, social e afetivo. Dessa forma, o brincar  desenvolve habilidades criativas,  sociais, emocionais, intelectuais, que contribuem para o desenvolvimento integral da criança. E o brinquedo adequado deve ser um objeto que promove essa linguagem. 

Brincar livre X atividades lúdicas

Os especialistas chamam atenção para a importância de distinguir esse brincar independente, como linguagem e prática de liberdade da criança, da atividade lúdica, que também tem o seu papel. 

“Quando a criança aprende sobre o mundo e se apropria dela mesma no brincar livre, ela faz tudo isso a partir do desejo, do exercício do querer, e isso é muito importante na Educação. As atividades lúdicas pedagógicas são super importantes também, porque trabalha-se aprendizados e conteúdos a partir da alegria no processo, e isso cria sentido e vínculo. São coisas diferentes, e as duas são importantes”, pontua Ana Claudia. 

O ponto é: quando a educação formal privilegia práticas produtivistas, com foco em resultados, a lista de atividades pedagógicas, lúdicas ou não, é longa, e o brincar livre fica lá no fim. Segundo Ana Cláudia, isso ocorre quando a Educação se inspira em um modelo competitivo de sociedade, com uma lógica de sucesso de causa e consequência, e os aprendizados da brincadeira não são tão óbvios. 

Para Lino de Macedo, docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em jogos infantis, o professor, muitas vezes, quer ser determinante, e expõe a criança cedo demais ao que o Jean Piaget chama de jogo de regras. Nem sempre as crianças têm estrutura emocional para suportar a competição. “Na brincadeira, ganhar ou perder pouco importa. O importante é se divertir, por isso ela é uma prática de liberdade. Diferentemente da criança, o adulto tem muita dificuldade em fazer algo sem uma finalidade predeterminada. O adulto que quiser ser brincante demais tem de tomar cuidado para não virar o estraga-prazer.”

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