Entrevista

Yves de La Taille: “O que faz falta para a criança não é conteúdo, é o recreio”

Para um dos maiores pesquisadores em psicologia moral do país, a pandemia é uma oportunidade para a escola falar de solidão

Psicólogo Yves de La Taille: no atual momento, conteúdo é o de menos. Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Na formação de nossas noções de justiça e respeito à diferença, o contato com o outro é fundamental. E a escola sempre exerceu esse papel de ponto de encontro. As relações afetivas, as risadas, os conflitos acontecem no papo de corredor, na brincadeira no pátio, aos abraços no portão - até mais do que dentro da sala de aula. 

Yves de La Taille, professor aposentado do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, especialista em Psicologia Moral (a ciência que investiga os processos mentais que levam alguém a obedecer ou não às regras e valores), afirma que o ensino remoto precisa saber recriar o recreio se quiser valorizar aquilo que mais importa para os alunos.  

No fim do mês, o psicólogo lança o livro Paisagens da Solidão, pela editora Adonis. A partir de letras de música, quadrinhos, filmes e peças de teatro, o autor pensa as várias formas, ou melhor, paisagens, da solidão. “Escrevi antes da pandemia, e não imaginava que dois anos depois [de redigido o livro] estaríamos todos confinados ao estilo Robinson Crusoé”, diz Yves [Robinson Crusoé, um náufrago que passou 28 anos isolado em uma ilha, é o personagem central do romance homônimo do escritor inglês Daniel Defoe (1660-1731), publicado pela primeira vez em 1719].

O psicólogo afirma que o tema da solidão é um dos exemplos de como a pandemia de covid-19 e suas consequências, como o distanciamento social, “mais escancara coisas do que cria. Uma delas, a solidão. Mas as pessoas não pensam sobre isso, e aí vira sintoma".

Yves, que falou a NOVA ESCOLA por telefone, defendeu que a escola precisa “pegar leve” com os alunos, dando mais atenção aos temas importantes agora, como o bom convívio com a família, no lugar de “aulas mais tradicionais do que já se tem no presencial".

NOVA ESCOLA: A falta da presença física do outro, que é uma realidade no ensino remoto, pode afetar as regras de comportamento?

YVES DE LA TAILLE: Certamente, a relação entre as pessoas precisa ser civilizada. No ambiente on-line, remoto, nós nos comunicamos, muita vezes, com pessoas que nunca vimos, e que talvez nunca vamos ver - fora desse contexto. Escrevem-se coisas sem saber se alguém vai ler ou não, e com isso, quase sem se importar quem vai ler ou como vai ler. Isso atinge nossa noção de como devemos agir. As relações sociais mediadas por tecnologias, que pressupõem o outro de uma forma tão etérea, afetam questões como o respeito, por exemplo. Isso se agrava neste contexto, mas é um problema anterior à pandemia. O outro pode estar na nossa frente e não ser visto, ouvido. O ensino remoto amplifica um problema que já estava na sala de aula. Ter um aluno sentado na carteira e um professor na frente da lousa não significa, automaticamente, presença. Mas, de fato, a pandemia agrava [a falta dessa percepção]. 

As famílias estão sendo convocadas a ser mais atuantes na educação formal, diante dos entraves do ensino remoto. Como o senhor avalia esse chamado? 

Depende muito dos pais, da família e da estrutura da família. Tem pais que, mesmos confinados, assumiram o papel de eles mesmos ensinarem os filhos, no caso das crianças pequenas. E alguns fazem isso muito bem. Mas os que estão fazendo isso já tinham uma consciência anterior à pandemia da importância de estarem junto. Outros pais não. E outras famílias aprenderam como ajudar a escola. Dificilmente, em qualquer contexto, elas ficarão no lugar que é dos professores e da escola. 

A pandemia esclarece mais coisas do que causa. Ela escancara a desigualdade social, por exemplo. Quando o Ministério da Educação se isenta da sua responsabilidade, escancara a posição atual do MEC com a falta de responsabilidade em relação ao futuro das pessoas. A pandemia escancara o que é ficar em casa para o grosso da população. Que casa? Ficar em casa pode ser muito ruim. Escancara os dilemas sobre respeito com essa questão que é como isso acontece quando você não está na frente da pessoa. É uma bela oportunidade para as escolas, sobretudo aquelas que já falam sobre esse tema, trabalhar essas questões.

As aulas a distância trouxeram questões que ainda não haviam sido pensadas, como, por exemplo, a obrigatoriedade ou não de os alunos abrirem a câmera nas aulas ao vivo. Como você avalia a criação de regras neste contexto? 

[Os alunos] podem ter excelentes motivos para não se abrir a câmera. A pessoa não quer se mostrar, é a intimidade dela, ela não quer mostrar a sua casa, ou porque é rica demais, ou porque é pobre demais, ou simplesmente porque ela não quer. Ligar a câmera não pode ser uma lei. Eu não posso obrigar ninguém a mostrar a sua intimidade. E essas regras precisam ser pensadas. Deve ter professor que acha que tem de abrir a câmera de qualquer jeito...

E tem também a questão do tempo das aulas. No começo da pandemia, algumas estavam sendo extensas, como na aula presencial. Aí perceberam que não funcionava ficar ali muito tempo parado olhando para uma tela com uma pessoa falando sem parar. A pessoa tem de sair, ir ao banheiro, por exemplo. Esses são bons temas para serem discutidos, estabelecidos e acordados com os alunos. Estamos levantando questões novas. É preciso fazer os alunos entenderem o valor daquilo que eles estão fazendo, em vez de obrigá-los a fazer coisas que eles estão vendo que não fazem sentido.

São vários os impasses para educadores e alunos pensarem...

Algumas coisas que a pandemia trouxe com mais força não terão volta. A educação a distância, segundo muitos especialistas nessa área, vai perdurar. Não totalmente, mas em muitas situações, sobretudo nas escolas privadas. Muitos alunos não acharam ruim não ter de passar uma hora indo e uma hora voltando da escola, como acontece nos grandes centros. As escolas precisam avaliar o que funciona e o que não funciona e criarem regras. Será frutífero a educação já tomar a dianteira dessa discussão. 

Há uma noção de que as crianças “tiram de letra” situações complexas, como é o caso da pandemia. Como o senhor avalia esse tipo visão?

O problema é a duração. Se fossem dois meses, elas teriam mesmo tirado de letra. Elas se adaptam e depois voltam ao normal. O problema é a duração. Ninguém imaginava, em março, que em outubro ainda estaríamos falando nisso. Dá para compreender que as crianças estejam cansadas. Mas a humanidade está cansada. Os pais estão cansados, os professores estão cansados, as crianças também. Só que elas são mais frágeis do que os adultos, geralmente.

A escola deve assumir que vai haver perda de conteúdo. Ensino a distância é uma coisa mais ou menos nova, e é muito especializado, e muito diversificado. Então, neste momento, os professores têm de entrar não para dar aula de matemática, mas para contar histórias que façam sentido para o que eles trabalham juntos. Para falar sobre solidão de alguma forma. Não dá para ser conteudista.

No estágio atual da discussão sobre ensino a distância, fazer isso é voltar ao ensino mais tradicional do mundo, aquele lá do começo do século 20,  em que o professor fala, o aluno escuta e repete - tudo o que a pedagogia moderna tentou abandonar e reinventar. 

Qual a melhor forma de abordar a questão emocional na escola?

Para abordar a questão emocional, a solidão, é preciso ter momentos de ensino a distância que não o português e a matemática clássicos. Mas que sejam momentos mais com cara de recreio. O que faz falta para a criança, agora, não é o conteúdo, é o recreio, que é um dos momentos mais ricos justamente porque não tem adulto por perto - coisa que elas não sabem mais o que é, estando com os pais o tempo todo. Isso serve para todas as etapas da escola.

Nenhum país do mundo achava que a pandemia duraria tanto tempo. Deram muita atenção para a questão sanitária e pouca para as dimensões sociais, psicológicas, emotivas. Agora estamos vendo crianças e adolescentes angustiados, depressivos.

A escola precisa pegar leve. Não dá para fazer aulas mais tradicionais do que já se tinha no presencial. E isso vai perdurar. A volta para o presencial é incipiente, com poucos alunos, e no primeiro gráfico ruim de contágio, [a escola] recuará. Não temos solução imediata para o distanciamento social, e já deu tempo de perceber o mal que ele causa na saúde mental. A escola precisa pensar no emocional, no convívio entre a família, com todo o cuidado que isso demanda. Os temas da escola com os alunos e família precisam ser outros. 

Abordar essas temas de forma transversal, permeando todo o planejamento, costuma ser uma dificuldade da escola. Por quê? 

Quem já fazia vai fazer. Eu realmente acredito que a maioria dos problemas que estamos enfrentando agora na pandemia, como o distanciamento social e tudo o que ele acarreta [como o ensino a distância, as relações apartadas, o trabalho feito em casa], já existia, mas agora, ou foi amplificada ou foram revelada. E revelar é bom porque é uma possibilidade concreta de enfrentar o problema. Meu medo é de que a crise passe e se esqueça o mundo de ontem, isso é sempre um risco. A Educação não pode perder a oportunidade dada por essa tragédia - porque é uma tragédia - para falar melhor sobre respeito, solidão, intimidade, memória. Precisamos ao menos tentar construir algo positivo. Do contrário, vamos viver como já vivemos, com os mesmos problemas, só que piorados.

Mais sobre esse tema