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O perigo do excesso de medicalização

Utilizar remédios como única opção para lidar com problemas não beneficia a saúde mental. Ações coletivas, sim

O trabalho conjunto, com o entendimento do papel social dos educadores e com o diálogo entre a equipe, promove uma melhora na saúde mental. Julia Coppa | NOVA ESCOLA

Quando questões sociais, econômicas e culturais são desconsideradas e todos os problemas passam a ser vistos apenas como um aspecto biológico, cuja única opção é a prescrição de remédios, um alarme deve soar. Essa prática, chamada de medicalização, está presente em vários ambientes, inclusive no educacional. A explicação é da psicóloga e psicanalista Viviane Neves Legnani, professora da graduação e da pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) e consultora deste especial sobre saúde mental. “Essa é uma realidade social que está posta, e é mais difícil nas escolas públicas. O professor tem de ser preparado para ela”, diz. Na entrevista a seguir, Viviane fala do uso inadequado de remédios para problemas psicológicos e das consequências disso para a saúde mental.

NOVA ESCOLA: Qual a diferença entre medicação e medicalização?

Viviane Legnani: A medicação ou terapia medicamentosa é o uso de remédios como tratamento. Ela é, sim, importante para alguns casos, que devem ser avaliados com cuidado por profissionais da área da saúde. Quando usamos o termo medicalização, estamos falando de um fenômeno que segue uma lógica pela qual, sem nenhum questionamento, se exige das pessoas recorrerem a remédios para retornar à engrenagem produtiva. Por um senso comum, acredita-se que todos os nossos problemas são passíveis de correção química. 

E quais problemas acometem os professores?

Existe o que denominamos de mal-estar docente. Esse termo foi cunhado por psicanalistas em alusão a um texto clássico de Freud que se chama O Mal-Estar na Civilização. Há pouco mais de 40 anos, a escola pública passou por um processo de ampliação de acesso para atender mais estudantes. Crianças de camadas populares passaram a frequentar as instituições. Porém, o corpo docente foi formado para atender um “aluno ideal”, que era de classe média, cujo pai é provedor e a mãe encarregada dos cuidados e da educação dos filhos. A escola ainda está parada na ideia dessa família, que não existe mais, ou talvez nunca tenha existido. Na realidade, em geral, o professor depara-se com famílias chefiadas por mulheres, que trabalham o dia todo e sem tempo para acompanhar a educação dos filhos integralmente. Isso incomoda profundamente alguns docentes. Então, costumou-se dizer que o problema da educação seria culpa das “famílias desestruturadas”, jargão muito comum no Brasil. Tem-se a ideia de que os pais não cuidam dos filhos e não se importam com seus estudos. Mas isso não é verdade. Eles se importam, sim, mas há várias questões sociais dificultantes. 

E como isso afeta a saúde mental dos docentes?

Quando um problema é atribuído a algo externo à escola, o professor fica paralisado. Se a culpa é da família ou das condições econômicas e sociais do país, não há nada que possa fazer. No começo, isso pode ser visto como um ganho: ele está a salvo porque não se considera responsável por aquilo. Mas sentir-se de mãos atadas é muito estressante. Se o professor não se coloca como um sujeito ativo e apto para resolver questões, a tendência é adoecer.

A medicalização pode ser vista como uma maneira de voltar à produtividade?

Não. O educador não vai se sentir melhor, pois, afinal, não resolveu o problema. Quando a rotina de licenças médicas e de uso contínuo de remédios começa, ao voltar ao trabalho, em geral, o professor pede para ser readaptado. E devemos também refletir sobre que produtividade é essa que queremos. Muitos casos de depressão ocorrem justamente porque a pessoa não consegue alcançar um ideal de produtividade. Aí, quando ela consegue parar, não quer voltar ao mundo que a adoeceu. 

Que caminhos professores e gestores podem percorrer para evitar o adoecimento mental?

Muitas escolas, diante desses problemas que relatei, constroem estratégias coletivas para lidar com o perfil das famílias e da comunidade na qual estão inseridas. Elas enfrentam as dificuldades e ganham em qualidade. A mudança não virá de um professor sozinho, competindo com os colegas ou dizendo (de maneira sutil ou contundente) que as famílias são as culpadas. É o trabalho conjunto, com o entendimento do papel social dos educadores e com diálogo entre a equipe. Isso tudo promove uma melhora na saúde mental.

Como a pandemia e o ensino remoto agravam a situação psicológica dos educadores?

A forma política como a pandemia está sendo gerida aponta para um atropelamento do cidadão, e isso não é diferente nas escolas. Os professores não estão sendo ouvidos sobre como as coisas devem funcionar. Para a volta às aulas presenciais, tem-se falado em ensino híbrido. Então, o docente ficará encarregado das duas modalidades (presencial e remota)? Ele foi treinado para fazer isso? Essas são algumas questões que os deixam muito angustiados. Por outro lado, a quarentena nos proporcionou um momento muito importante de parada para pensarmos no mundo que queremos daqui para a frente. Essa situação mostrou o quão frágeis somos e o quanto dependemos dos outros. É uma oportunidade de rompermos com uma visão individualista ainda muito comum na sociedade. É hora de reconstruir laços sociais mais promissores dentro das instituições educativas.

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