1979-2020

Das crianças aos "meninos que viraram homens", Professora Marcia era uma referência para todos

Grande contadora de histórias, ela era uma figura materna para todos aqueles que já passaram pela escola Paulo Freire, em Nova União (RO)

Marcia não teve filhos, mas amava e mimava os sobrinhos e, claro, as crianças da escola Paulo Freire. Ilustração: Marcella Tamayo/NOVA ESCOLA

Quem chegasse à escola Paulo Freire, na zona rural de Nova União, interior de Rondônia, provavelmente encontraria a professora Marcia Teixeira da Silva sentada no chão, com um livro no colo, cercada por dezenas de crianças de 4 ou 5 anos. E elas teriam os olhos arregalados, os ouvidos atentos, as mãozinhas desenhando no ar -- pedindo por mais uma história, só mais uma. “A Marcia uma grande contadora de histórias infantis”, diz Maria, amiga de infância e colega na escola. Bastava abrir um dos livros de ilustrações e começar uma narrativa para as crianças viajarem com ela. “Depois, eles pegavam o livro, que não tinham palavras ainda, e inventavam as histórias sozinhos.” Quando ela via, estavam perdidos na própria imaginação. 

Marcia nascera ela mesmo “no sítio”, como se diz em Rondônia para falar da zona rural. “Talvez por isso amasse tanto os pequenos da escola de assentamento. Ela tinha uma ligação com o sítio”, diz Maria. “Nossos alunos são filhos de gente que lutou muito pela terra, que sofreu pra ter o que têm, então nós acabamos formando uma grande família e ela gostava desse sentimento”, conta a colega Rosineide, que trabalhou por anos com ela na Paulo Freire. “Pois ela não via as crianças só como alunos: eram como os filhos dela. Até em casa ela os levava. E eles adoravam.”

Era a mais velha dos quatro irmãos nascidos em Ouro Preto d’Oeste, Rondônia, cidade cujo distrito daria origem à cidade de Nova União. Nasceram e cresceram “no sítio”: os pais eram agricultores e trabalhavam na roça plantando arroz, feijão, milho, o que garantia o sustento e as vendas na cidade. “Mas eles sempre priorizavam nosso estudo”, diz a irmã, Márcia -- com acento. Sim, ambas têm o mesmo nome. “A única explicação do meu pai é que, chegando ao cartório, foi o único nome de que ele lembrou”, conta. A escola ficava longe, então iam todos caminhando, quarenta minutos por dia, sob sol ou sob chuva. Os quatro se formaram professores. Mas as duas Marcias é que seguiram o caminho da Educação Infantil.     

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Marcia terminou o Ensino Médio, cursou o magistério e logo começou a lecionar. Pouco depois passou num concurso para o município e começou a lecionar na escola Paulo Freire, bem no meio do “sítio”. Quando a prefeitura passou a exigir curso de pedagogia para trabalhar no ensino infantil, aproveitou a oportunidade e fez a faculdade. Afinal, não faria outra coisa da vida. “Aquelas crianças eram a vida dela”, diz Maria, que participou da segunda turma de pedagogia com ela. “A Marcia era completamente apaixonada pelas crianças do pré.” Ela até chegou a trabalhar no ensino fundamental. Mas não queria: sentia falta dos pequeninos. 

Solteira e satisfeita,morava com a mãe. “Gostava de ser livre”, frisa a irmã. Marcia não tivera filhos, mas amava e mimava cada um dos cinco sobrinhos -- além de, claro, dedicar todo seu tempo e carinho às crianças da escola. Quando chegava, abraçava,  beijava e apertava cada um deles. “Muitos não tinham em casa a atenção que mereciam, porque os pais trabalham demais. Então era uma mãe para muitos, uma psicóloga que tinha a paciência de ouvir, diz a irmã. Ainda hoje, anos depois, muitos a procuravam em busca de uma palavra certa. “Menino que virou homem, criou família, ainda mandava mensagem ou ligava pedindo conselho.”

Quando a pandemia chegou e as aulas viraram remotas, Marcia sofreu. “Ela, que nunca tirou uma licença na vida, nenhum afastamento, pra quem a escola era tudo, foi difícil. Aquelas crianças eram a vida dela.” À irmã, às amigas, em mensagens e ligações, dizia o mesmo: “Ai meu Deus, que saudade de abraçar minhas crianças, de ficar pertinho.” 

“Acredito que cada um tem um dom. O dela era amar e ensinar aquelas crianças pequenas”, diz a irmã. “Era a vocação dela.” E foi o que ela fez a vida toda, desde que saiu da adolescência até julho deste ano, quando foi para o hospital com sintomas de covid-19. Marcia morreu dia 19, aos 41 anos, primeira vítima fatal na cidade de Nova União. “Alguns pais mandaram vídeos das crianças, desesperadas de saudade dela”, diz Márcia. Os pais ainda não sabem como explicar o inexplicável.


O texto acima integra a edição especial de Nova Escola Box "Vida, saudade e legado: os educadores que partiram em 2020". Durante o mês de outubro, vamos contar a história de dez grandes educadores e funcionários que inspiraram alunos, colegas e cidades ao longo de suas vidas, interrompidas, infelizmente, pela covid-19. É nossa forma de dizer "muito obrigado" pelas lições deixadas dentro e fora de sala de aula e lembrar aos que seguem a vocação de lecionar o poder transformador da Educação para tantos brasileiros, muitos deles em luto por perdas humanas inestimáveis. 

Confira os textos que já publicamos

27/10 - Mais que asas à imaginação, Lucineia deu um avião de possibilidades às crianças
26/10 - "Cada um pode, a seu jeito, fazer o bem": Maria das Graças Cária ensinava Química e generosidade
22/10 - Aulas de Língua Portuguesa, contos e Helena: os legados da professora Camilla Graciano
20/10 - As lições de Matemática e de superação de Valter Paulino, que pode virar nome de escola
16/10 - "Rodrigo Braga, o professor de Biologia que lutou para conscientizar sua escola do risco da pandemia"
15/10 - “Gosto do que faço, amo meus alunos”: a paixão da professora Maria Aparecida pela escola

14/10 - Em suas aulas, Saulo Basílio guardava e transmitia a cultura do povo indígena terena
08/10 - Aguinaldo Marinho, o professor que levava a alma encantadora das ruas a seus alunos

Créditos deste Box

Reportagem: Willian Vieira
Produção: Marcelo Valadares
Edição: Miguel Martins e Pedro Annunciato

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