1950-2020

"Cada um pode, a seu jeito, fazer o bem": Maria das Graças Cária ensinava Química e generosidade

Ela conquistava os alunos para suas duas causas: a disciplina e a arte de ajudar o próximo, que conhecia tão bem como os elementos da tabela periódica

A pequenina senhora de doces olhos castanhos tinha uma presença grave que dominava o espaço e impunha respeito.  Ilustração: Marcella Tamayo/NOVA ESCOLA

Um estudante incauto que passasse displicente pela primeira prova de Química da Tia Cária não esqueceria jamais. “Eram muito, muito difíceis”, diz Letícia Tropia, ex-aluna do Colégio Santo Antônio, que passou pelo batismo de exigência do método Cária pronta para enfrentar o vestibular. Coordenadora pedagógica do 2º ano, seu lema didático era claro: ninguém aprende tudo no 3º ano do Ensino Médio. Para ela, Química era coisa séria e escola, lugar de aprender. “Ela fazia o tipo mãezona, rígida, exigente e dedicada”, diz o professor de literatura Carlos Simões, seu colega por mais de 20 anos. “Sabia de cor o nome de cada um dos mais de 200 alunos que tinha. E, nos conselhos de classe, falava com propriedade sobre os detalhes de cada um.” 

Como a mãe responsável pelo lar e pela prole, Maria das Graças Cária era a autoridade na sala e exigia o cumprimento das regras: lição tinha data de entrega, exame requeria horas de estudo -- e não tinha papo: sem dedicação ninguém passava de ano. “Agora, se ela percebesse que não se tratava de malandragem, e sim de dificuldade de aprendizagem, ela dava ao aluno toda a atenção do mundo", diz Simões. Explicava tudo com tanta desenvoltura que quem quisesse, aprendia. Se ainda assim fosse preciso ficar após a aula para tirar dúvidas, ela o fazia com gosto. “E dividia o lanche com a gente”, diz Letícia. “É isso que mais lembro: ela dividindo a comida ou pedindo pra gente juntar lacres de latinha para comprar cadeiras de rodas para pessoas carentes.” 

Professora tradicional de um colégio tradicional de classe média alta de Belo Horizonte (MG), a pequenina senhora de doces olhos castanhos tinha uma presença grave que dominava o espaço e impunha respeito. Mas chegava à sala de aula já com um sorriso no rosto, disposta a conquistar os alunos para suas causas -- que eram duas: a Química, disciplina difícil e laboriosa, que se aprende estudando conceitos e testando fórmulas e experimentos; e o voluntariado, a arte de ajudar o próximo que conhecia tão bem quanto os elementos da tabela periódica. Pois seu mantra cotidiano, que incutia nos alunos, era esse: “cada um pode, a seu jeito, fazer o bem.”  

Maria das Graças Cária nasceu em Amparo do Serra, interior de Minas Gerais, filha de um caminhoneiro pobre de origem italiana e de uma dona de casa. Terceira de cinco irmãos, mal teve tempo de ser criança: aos 12 anos já vivia sem a família na capital, no internato do Colégio Nossa Senhora da Piedade. “Minha mãe sempre quis que ela estudasse e aquele era o melhor colégio”, conta o irmão caçula, Pascoal Cária. Para ajudar nas despesas, fazia o que as irmãs auxiliares mandassem -- até a limpeza do lugar. “Ela contava que colocava um banquinho no banheiro do colégio, subia e olhava pela janela para ver as luzes da cidade. Achava lindo.” Até que vinha uma freira e ralhava com ela. Era sempre tempo de estudar e trabalhar. 

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“Nas férias voltava pra Amparo e o que fazia? Descansava? Não! Ela nos ajudava com a lição, pois estudava numa escola privada e a gente, na pública”, lembra o irmão. E lá ia Maria preparar os deveres de Matemática e Português, que aplicava aos irmãos menores com a seriedade de uma professorinha. “Tinha até um horário e um local fixos de aula, como numa escola. E só quando a gente entregava a lição pronta é que íamos brincar. A docência estava no sangue.” 

Do internato, decidiu estudar engenharia química na UFMG e começou a dar aulas de exatas em colégios. Foi quando percebe-se professora nata. Era aquilo que queria fazer o resto da vida. Até tentou seguir carreira de engenheira, o que a família queria, e estagiou numa usina de de açúcar, mas em vão. Desistiu da carreira na indústria, e dos possíveis grandes salários, voltou à universidade (agora na faculdade de Educação) e se formou professora para o Ensino Médio -- logo passando num concurso para o ensino municipal. No colégio Marconi, ela ensinaria por décadas, até se aposentar -- pela primeira vez, claro. Pois sua carreira estava só começando.

Cária deu aulas em colégios particulares e cursinhos pré-vestibulares. Havia muitos anos tinha uma “salinha” na qual lecionava Química (e o irmão, Biologia) para os vestibulandos do concorridíssimo curso de Medicina da UFMG. Mas ela ficaria mesmo conhecida na cidade como a eterna professora de Química do Colégio Santo Antônio, tradicional escola de elite de Belo Horizonte -- onde, além de formar gerações de homens e mulheres, muitos deles engenheiros como ela, dedicava-se mais que tudo ao voluntariado. “Para esses alunos, muitos de famílias ricas, ela era uma espécie de guru, que lhes mostrava outra realidade”, diz o professor Carlos. Cária organizava excursões para realizar ações filantrópicas ao Vale do Jequitinhonha e visitas a asilos de idosos, além de rifas e outros eventos para arrecadar fundos e doar a pessoas carentes. 

Quando veio a Covid-19 e muita gente perdeu a renda da noite para o dia, mobilizou os alunos do Grupo de Estudantes Voluntários, coordenado por ela, para as doações. “O pipoqueiro e o baleiro da saída da escola, as faxineiras terceirizadas -- ninguém ficou na mão”, diz o irmão. Fosse nas barraquinhas de doces nos eventos do colégio franciscano, onde “botava o avental” e ia vender comida para arrecadar fundos; fosse nas fraternidades espíritas nas quais era tarefeira, visitando enfermos ou montando cursos profissionalizantes para centenas de jovens à margem da sociedade em busca de emprego; fosse cuidando da mãe e do irmão em seus últimos momentos de vida -- ela fazia seu o lema do voluntariado: há sempre como ajudar alguém. “Seu hobbie era participar das dificuldades das outras pessoas”, diz Pascoal. E como tinha tempo para fazer tudo isso? “Talvez porque ela vivesse a vida dela mais para os outros do que pra ela mesma.”

No meio de agosto, o marido adoeceu com Covid-19 e foi internado. Dias depois, Cária perdeu o olfato -- fez o exame, confirmou a doença, mas estava bem, então voltou para casa e seguiu preparando e dando aulas online. “Ela literalmente deu aula até os últimos dias de vida”, diz o irmão. O marido morreu de Covid-19 em 29 de agosto. Dias depois, foi Cária quem ficou mal. Ela morreu em 2 de setembro, aos 69 anos, deixando dois filhos, uma netinha “e um vazio imenso na escola e na vida de todos nós”, diz o professor Carlos. “O legado dela, porém, vai seguir. “A prova é que, na semana seguinte, no Instagram, os alunos continuaram as arrecadações para pessoas carentes na pandemia -- agora “em memória” à professora Maria das Graças Cária.


O texto acima integra a edição especial de Nova Escola Box "Vida, saudade e legado: os educadores que partiram em 2020". Durante o mês de outubro, vamos contar a história de dez grandes educadores e funcionários que inspiraram alunos, colegas e cidades ao longo de suas vidas, interrompidas, infelizmente, pela covid-19. É nossa forma de dizer "muito obrigado" pelas lições deixadas dentro e fora de sala de aula e lembrar aos que seguem a vocação de lecionar o poder transformador da Educação para tantos brasileiros, muitos deles em luto por perdas humanas inestimáveis. 

Confira os textos que já publicamos

22/10 - Aulas de Língua Portuguesa, contos e Helena: os legados da professora Camilla Graciano
20/10 - As lições de Matemática e de superação de Valter Paulino, que pode virar nome de escola
16/10 - "Rodrigo Braga, o professor de Biologia que lutou para conscientizar sua escola do risco da pandemia"
15/10 - “Gosto do que faço, amo meus alunos”: a paixão da professora Maria Aparecida pela escola

14/10 - Em suas aulas, Saulo Basílio guardava e transmitia a cultura do povo indígena terena
08/10 - Aguinaldo Marinho, o professor que levava a alma encantadora das ruas a seus alunos

Créditos deste Box

Reportagem: Willian Vieira
Produção: Marcelo Valadares
Edição: Miguel Martins e Pedro Annunciato

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