Entrevista

Silmara de Campos: “O que nos une é que somos todos adultos”

Muita prosa é a receita da educadora e especialista em EJA para driblar a distância e convencer jovens e adultos a se manterem na escola.

A educadora Silmara de Campos. Foto: Divulgação

Gana, resistência e persistência. Os substantivos que a educadora Silmara de Campos atribui aos seus colegas de profissão são facilmente vistos em sua fala. Mestre e doutora em Educação pela Unicamp, hoje atua no ensino superior após 30 anos de serviços prestados à Prefeitura de São Paulo em salas de aula da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e do Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA). É também pesquisadora do Gepeja, grupo que há 23 anos pesquisa as questões que envolvem a educação de adultos. 

Para ela, a luta do educador é eterna, persistirá enquanto persistirem as desigualdades, que só aumentaram com a pandemia. Se as etapas regulares da educação sofrem com o distanciamento, a ausência das aulas presenciais é um problema ainda maior na EJA, cujo engajamento dos alunos depende dos vínculos de afeto estabelecidos entre estudantes e professores. “Predominantemente, o aluno da EJA é carente economicamente, nem todos têm o acesso ao computador, à internet. E nem todos têm a habilidade para trabalhar com um computador ou com o celular. Eles estão duplamente prejudicados em todos os sentidos”, avalia. 

A superação do atual contexto só pode acontecer por meio do diálogo e de um projeto político - não no sentido partidário - e pedagógico que problematize a situação e provoque mudanças no sujeito, defende Silmara. “Não podemos mudar o mundo, mas podemos fazer a diferença e esse é o compromisso do educador: fazer a diferença por onde passamos.”

O exercício no retorno, para além dos protocolos de saúde, é a prosa, a conversa, o diálogo. “Muitos educadores não estão seguros para voltar, há muitas variáveis, mas nada que uma prosa não resolva. Estamos em outubro, não é uma questão de recuperar conteúdo. O que vale um conteúdo hoje em relação às 147 mil vidas que se foram?”, questiona. “Não é voltar para recuperar conteúdo, isso é uma bobagem.” 

Confira os principais trechos da entrevista concedida por Silmara Campos para NOVA ESCOLA.

NOVA ESCOLA: Os alunos da EJA têm inúmeras demandas além da escola e o professor se torna peça chave na motivação dos estudantes. Como manter o vínculo no ensino remoto? Como substituir, se é que isso é possível, a sala de aula e manter os alunos engajados?

SILMARA CAMPOS: Não é nada simples. O ensino remoto para a EJA é muito difícil não só por essa relação afetiva, que é muito importante na EJA, mas também pelas condições materiais dos alunos. Predominantemente, o aluno da EJA é carente economicamente, nem todos têm o acesso ao computador, à internet. E nem todos têm a habilidade para trabalhar com um computador ou com o celular. Eles estão duplamente prejudicados em todos os sentidos. Mas se há acesso à internet, eu tenho visto na minha prática no ensino superior, que nos acostumamos às chamadas de vídeo de uma tal forma que a gente tem se aproximado, a gente tem conversado até mais se há a estrutura tecnológica. 

Historicamente a EJA é relegada a segundo plano no que diz respeito às políticas públicas. Qual é a saída para que a pandemia não agrave ainda mais esta situação?

Educadores de uma forma geral temos que ter aquilo que chamo de muita gana, resistência e persistência. O educador que toma para si a luta no campo da Educação de Jovens e Adultos tem que ter isso de uma forma clara e saber que EJA implica em militância, implica em retomada de princípios da educação popular, que tem nas suas entranhas, na sua raiz, a luta por direitos que, embora estejam escritos, nem sempre chegam até onde deveriam chegar. E isso implica em luta, no resgate efetivo do direito à educação no exercício da cidadania e saber que esse adulto, esse jovem, que está no mercado de trabalho, é um adulto que produz nesta sociedade. A luta do educador é eterna. Nós sempre teremos que lutar por educação enquanto houver desigualdade. Com essa pandemia as diferenças se acirraram e isso significa que a luta vai ter que aumentar. 

Os mais vulneráveis sofrem de forma mais severa os diversos efeitos da pandemia, da saúde à crise econômica. Como convencer esses jovens e adultos a persistirem diante de um contexto que ficou ainda mais difícil? Qual a função afetiva do professor neste convencimento?

Por mais que tenhamos problemas gerais, eu sempre penso em soluções locais. A possibilidade de superar essa situação, não só em função da pandemia só pode acontecer por meio do diálogo e de um projeto político - não no sentido partidário - e pedagógico que problematize essa situação e que provoque mudanças pequenas no sujeito, no jovem, no adulto, para que ele consiga entender a dinâmica social que temos. Não podemos mudar o mundo, mas podemos fazer a diferença e esse é o compromisso do educador: fazer a diferença por onde passamos. É para aquele grupo que você vai mostrando, dialogando, problematizando, a situação que estamos vivendo. É claro que isso é demorado mas, tal como Paulo Freire tanto defendeu, e eu acredito nisso, a compreensão é que leva à mudança. Ter a clareza que a gente vive num sistema capitalista e que esse capital sobrevive do alimento chamado pobreza. 

Pensando no papel da educação na construção da cidadania, como trazer essas discussões para o mundo digital e o que o professor pode fazer localmente, na prática, para fazer essas discussões driblando a ausência da convivência física? 

Vi algumas coisas pontuais e vou colocar como exemplos. Ações que não têm um alcance para toda a rede, mas que podem ser feitas de forma local. As escolas, de forma geral, não estão lacradas. Há a possibilidade de se travar um certo diálogo com os alunos mantendo os protocolos, não no espaço interno da escola, mas pode ser no pátio, numa praça... É possível. Vi isso em lugares menores, em cidades do interior, por exemplo. Então volto à minha tese inicial: os problemas são globais, as soluções são locais. Temos que saber que ao fazer isso tiramos a responsabilidade de um governo que tem o dever de prover algumas coisas, é uma crítica importante também. Mas o que a gente pode fazer? Vamos usar esse tema: será que é esse possível que tem que permanecer ou ele pode se alargar desde que a gente encontre mecanismos de reivindicar direitos, inclusive ao aparato tecnológico? Isso é direito de todos. Não dá para pensar neste século sem pensar na internet. 

Vivemos um momento único, mas dá para imaginar quem será o aluno de volta às salas de aula considerando todas as questões de saúde e econômicas que envolvem a vida desses jovens e adultos? Como os professores podem se preparar para recebê-los? 

O exercício no retorno, para além dos protocolos de saúde, é a prosa, a conversa, o diálogo. Muitos educadores não estão seguros para voltar, alguns são do grupo de risco, há muitas variáveis, mas nada que uma prosa não resolva. Estamos em outubro, então não é uma questão de recuperar conteúdo. O que vale um conteúdo em relação às 147 mil vidas que se foram? Então é muito mais um diálogo para discutir tudo isso, as questões afetivas, que são amplas, inclusive para o aluno se sentir acolhido, confortável e seguro. E o educador também. Estamos falando de gente. O aluno adulto da EJA está com medo, o professor está com medo. O que nos une é que somos todos adultos, temos uma história de vida que precisa ser conversada. Por que voltar? Por causa do conteúdo? O conteúdo vale menos nesse momento. Tem ainda a questão da saúde mental: "eu preciso voltar porque estou sentindo falta das pessoas". Então vem para cá, vamos conversar. Se você está num ambiente aberto, com todos os protocolos, com o distanciamento, é possível. O adulto tem consciência do cuidado que tem que ter e vamos conversar, inclusive, sobre o que aconteceu nesses sete meses de distanciamento. Não é voltar para recuperar conteúdo, isso é uma bobagem. Essas pessoas têm a escola como um lugar de trocas de todas as naturezas, de conhecimento, de afetividade. A gente sabe que o professor é um sujeito muito importante nesse processo de convencimento do aluno se manter na escola na EJA porque há uma relação de confiança entre aluno e professor, uma figura valiosa, uma pessoa de confiança. Esse elo não pode ser rompido e não tem pandemia que consiga romper se esse elo já se estabeleceu.

Mais sobre esse tema