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O que é racismo estrutural e como praticar uma educação antirracista

Fundamental para a compreensão de nossa sociedade, conceito pode (e deve) ser trabalhado em História e nos demais componentes curriculares do Fundamental 2

Não existe educação de qualidade que não seja antirracista. Saiba como falar do tema com seus alunos. Ilustração: Yara Santos/NOVA ESCOLA 

Você sabe o que é racismo estrutural? Caso um aluno pergunte, o que você responderá? Embora fundamental no país, o debate sobre o tema, muitas vezes, fica restrito à academia, disperso nas redes sociais, cercado de dúvidas e ausente da escola, mesmo depois de uma década de criação da Lei nº 10.639/2003 e da existência de uma data comemorativa, o Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro. 

Este é o primeiro assunto que abordaremos ao longo do especial Consciência Negra o ano inteiro, programado para ser publicado em Nova Escola BOX ao longo deste mês de novembro, e em cujos assuntos podem (e devem!) ser levados para a escola o ano todo - por isso, escolhemos este título para a série. 


“O racismo é um elemento muito complexo na sociedade e não podemos deixar de vê-lo na sua ligação intrínseca com outros elementos da vida social, como a economia, o direito, a política e até mesmo como uma produção do imaginário social. Este momento que passamos no mundo [em 2020, com os protestos antirracistas] deixou bastante evidente que não há mais lugar sobre pensamentos acerca do racismo que não estejam dispostos a ir além de atos individuais, questões comportamentais ou que pensem o racismo como parte de um mau funcionamento institucional.”

Silvio de Almeida, em entrevista ao programa Roda Viva em junho de 2020.


O que é, afinal, racismo estrutural?

O racismo não é uma questão individual ou comportamental, ressalta Silvio de Almeida - autor do livro O que é racismo estrutural (Editora Jandaíra, 192 págs., esgotado) e um dos pensadores contemporâneos mais relevantes sobre o tema na atualidade - mas um assunto fundamental para a compreensão da nossa sociedade e de suas desigualdades. 

Com base nele, é possível rastrear a origem e relacionar dois dados aparentemente desconexos: cerca de 80% das pessoas assassinadas pela polícia em 2019 eram negras e só 6% das bonecas produzidas no Brasil são negras. Os dados, retirados respectivamente do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e de uma pesquisa da ONG Avante, ajudam a traçar o complexo quadro do racismo no Brasil. 

“O racismo estrutura as relações nas dimensões econômica, política e subjetiva. As manifestações racistas são só a ponta de um iceberg”, defende a historiadora Sherol dos Santos, formadora do Time de Autores de NOVA ESCOLA, professora da rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul e consultora pedagógica deste especial. “Temos uma maioria esmagadora de pessoas negras vivendo no Brasil. No entanto, o fato de 100% dos juízes da Suprema Corte serem brancos não causa nenhuma estranheza. Qual população essa Corte representa? Por que não causa estranheza? A resposta mais rápida: a crença em que há uma hierarquia entre os humanos faz parte da nossa lógica de viver”, explica.

Para Janine Rodrigues, educadora, escritora e fundadora da Piraporiando, editora infantojuvenil focada na diversidade, o ponto de partida é entender que todo racismo é estrutural. “O racismo no Brasil está nas instituições, não é uma relação que se estabelece no campo do pessoal”, explica. Ou seja, quando alguém pratica um ato racista, não é direcionado àquele indivíduo específico, mas sim, a tudo que ela representa na sociedade. 

Janine lembra que uma das faces mais cruéis do racismo é justamente a que tenta tirar a subjetividade das pessoas, tratando todas de uma única forma, perversa e desumana. “São ações que não consideram a pessoa na sua individualidade, e sim, dentro de um grupo, a ideia que se faz deste grupo também é racista”, aponta. 

O racismo e o papel da escola 

É muitas vezes na escola que as crianças negras experienciam o racismo pela primeira vez. “A desumanização dos corpos negros faz parte de uma lógica racista e as crianças negras são vistas e tratadas com menos carinho, menos compreensão e atenção no ambiente escolar”, afirma Sherol. Por isso a necessidade de uma educação antirracista abrangente, que extrapole o currículo e o mês de novembro. “Esse pressuposto racista atrapalha a aprendizagem, impede o acesso, normaliza o racismo entre as próprias crianças e aumenta substancialmente a evasão escolar”, afirma. De acordo com dados do IBGE, dos 10 milhões de jovens (14 a 29 anos) que evadiram antes de completar a Educação Básica, 71,7% são pretos ou pardos.

De modo geral, avalia Janine, o racismo que se expressa na escola nada mais é do que o racismo que se expressa na sociedade. Portanto, falar de antirracismo na escola é falar também de antirracismo na sociedade. Diante disso, qual é o papel da escola? “Tudo que a escola fizer tem de olhar para a educação antirracista. Não é questão da disciplina A, B ou C. É ótimo ser convidada para tratar do tema em novembro e continuarei indo. Mas a mensagem que fica é: e na feira de ciências? Não tem um cientista negro que possa participar? Os negros não estão na ciência? E uma feira de robótica? Assim a escola constrói um imaginário de que as pessoas negras não estão nessas áreas. A escola tem de se atentar a isso se quiser mudar”, afirma Janine. 

“Educação antirracista é no dia a dia, não é fazer uma pintura em novembro com os rostos de figuras negras. Isso é uma atividade e é algo maravilhoso, é celebração, mas não é disso que se trata. Estamos falando de um trabalho continuado, de anos e anos de um país que foi escravizado e construiu sua história em cima do conceito de raça”, reflete a escritora Janine Rodrigues.

Mas quando começar a falar de racismo na escola?

“Desde a idade zero”, o racismo deve ser abordado, defende. “Deixar a curiosidade, o não saber, para os alunos. E aproveitar esse diálogo. A educação é libertadora, emancipa”, afirma. O racismo deve ser abordado desde a Educação Infantil porque se trata de uma mudança de postura, não somente de conteúdo, afirma Sherol. Para que isso aconteça, é fundamental construir um currículo que se desprenda da visão ocidental e eurocêntrica (isto é, que privilegie apenas a cultura, a história e a produção de conhecimento vindas da Europa). 

Na linha de frente dessa desconstrução está o professor, mas ele precisa de suporte, lembra Janine. “Temos a Lei [nº 10.639/2003, que alterou a LDB], ela é ampla, é uma boa estrutura. Mas o que o professor recebeu de suporte para que ele possa fazer um trabalho de qualidade que trará resultados?”, questiona.

É importante lembrar, ainda, que muitos professores são brancos (embora esse perfil esteja mudando) e todos estão inseridos em uma sociedade racista. Portanto, a desconstrução também passa por eles, de forma pessoal.

Janine explica que, assim como o brasileiro não se considera racista, os professores também não se classificam assim, mas o são. “É chocante quando a pessoa se dá conta, porque o racismo não reside só na ação que discrimina, é a estrutura”, reforça. 

Para a educadora, o racismo está na não valorização da história afro-brasileira, no aluno negro que não é atendido da mesma forma que o branco ou na falta de compreensão das omissões dos livros didáticos. 

“Todas as formas em que o racismo se manifesta são igualmente perversas. O racismo contido vai se perpetuando, consolidando, ainda mais na escola, que é um lugar onde o aluno cria vínculos”, destaca. Para ela, o professor precisa promover uma educação antirracista, e, para isso, deve reexaminar-se. “Por mais que seja doloroso, ele se comprometeu a educar. Não existe educação de qualidade se ela não for antirracista”, conclui Janine.

COMO CONSTRUIR UMA AULA ANTIRRACISTA?
Veja, abaixo, dicas práticas para o Ensino Fundamental 2

HISTÓRIA
Emancipe o pensamento, evite o eurocentrismo e aproveite as atualidades 

Em termos curriculares gerais, é nas aulas de História que se dão as melhores oportunidades para desconstruir estereótipos e avançar numa educação antirracista. 

“O primeiro passo é descolonizar o pensamento, situando a História do Brasil dentro do projeto colonial, realocando os sujeitos dentro desse processo”, explica Sherol. Isso inclui lembrar que tanto os povos nativos americanos quanto os africanos possuíam trajetórias independentes e muitas vezes mais antigas que as dos povos europeus. “Pautar a história do território brasileiro a partir apenas da lógica europeia é a expressão máxima da vitória do pensamento racista”, define.

Temas atuais, como o movimento #blacklivesmatter (“vidas negras importam”, em tradução livre), podem ser ganchos interessantes para falar do racismo estrutural em sala de aula, num diálogo franco entre professor e estudantes.

“É preciso botar a pauta na mesa e aproveitar”, aconselha Janine. A dica da educadora é: ouça o que os alunos estão falando sobre o tema. Quais os comentários fazem entre elas? Pegue esse gancho e leve o assunto para a aula. “Desta forma, será pelo interesse dos alunos, não vai ficar uma coisa descolada ou hierarquizada”, completa.

LÍNGUA PORTUGUESA
Trabalhe com a biografia do escritor e abolicionista Luiz Gama 

A professora e pesquisadora Lígia Fonseca Ferreira, especialista na obra de Luiz Gama (1830-1882), sugere trabalhar a biografia do escritor e abolicionista nos anos finais do Ensino Fundamental. “Luiz Gama foi escritor denso, fez sátira política, racial, críticas ao Judiciário e, por isso, pode ser difícil aos adolescentes acessar diretamente sua obra”, ressalva Lígia. No entanto, é possível trabalhar a história do autor, um menino que nasceu livre na Bahia, foi escravizado, liberto e se tornou um ícone ao transformar a própria história.

Nas aulas de Língua Portuguesa, a professora sugere incentivar os alunos a pensarem sobre suas próprias histórias, promovendo um diálogo entre o presente e o passado. Assim, a figura de Luiz Gama pode ser analisada não só pelas suas contribuições históricas, mas também, por aspectos de sua biografia que podem guardar correlações importantes com a dos próprios alunos. “É um trabalho de produção da própria biografia, costurando com a de Luiz Gama. Que história ele [o aluno] conta de si mesmo?“, sugere. 

Há, ainda, uma possibilidade de conexão com a aula de História. Lígia afirma que os professores podem se apropriar da obra jornalística de Luiz Gama, usando-a como um retrato daquele tempo para trabalhar marcos históricos por uma perspectiva brasileira, e não europeia. 

Esses marcos estão, por exemplo, no fato de Luiz Gama ter nascido pouco depois da Independência e ter morrido antes da Abolição e da Proclamação da República, embora toda a sua vida tenha sido atravessada por isso. 

Quer um exemplo de material para trabalho em aula? A carta de Luiz Gama a seu amigo Lúcio de Mendonça, escrita em 25 de julho de 1880, é um bom começo. O texto está disponível neste link.

CIÊNCIAS, GEOGRAFIA, MATEMÁTICA, ARTE E EDUCAÇÃO FÍSICA
Reflita sobre os impactos da colonização na área do conhecimento e promova a diversidade

Nas demais componentes curriculares, é fundamental que o professor entenda como a sua área de conhecimento foi construída e os impactos da colonização naquilo que está sendo apresentado como conhecimento científico.

Por exemplo, um professor de Ciências que explica a catalogação e identificação de espécies de plantas ignorando que esses saberes já estavam disponíveis e circulando entre os povos nativos não europeus - e não são menos válidos por não serem escritos - está abordando o conteúdo dentro de uma perspectiva brancocêntrica e colonizada, explica Sherol.

PARA SABER MAIS

Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil
Eliane Cavalleiro, 112 págs., R$ 35

O livro é resultado de um trabalho da pesquisadora que chegou a conclusões chocantes sobre a situação de preconceito racial na primeira infância.

O que é racismo estrutural?
10 min, 2016
Disponível em: https://youtu.be/PD4Ew5DIGrU

Vídeo publicado pelo canal da Editora Boitempo no YouTube traz o pesquisador Silvio de Almeida, um dos principais pensadores do tema na atualidade, explicando esse fenômeno de forma simples e didática.

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