A Literatura como aliada no desenvolvimento socioemocional
Dar autonomia na leitura e acolher os sentimentos dos alunos é fundamental para trabalhar emoções e sentimentos a partir da leitura mediada pelo professor
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) indica dez competências gerais que devem ser desenvolvidas ao longo do percurso escolar. Além de conhecimentos lógico-formais, o documento abarca também o desenvolvimento de habilidades socioemocionais, como a empatia e o autocuidado. A proposta ganha ainda mais relevância diante do cenário atual: no novo contexto escolar marcado pela experiência da pandemia, do isolamento social e da distância da escola, é possível que muitas emoções e sentimentos estejam à flor da pele.
Como fazer isso na prática? Um caminho que pode ser trilhado na companhia dos alunos do Ensino Fundamental, faixa etária que abarca pré-adolescentes e adolescentes, é o trabalho com textos literários, em especial nas aulas de Língua Portuguesa.
“Falar sobre habilidades socioemocionais é falar sobre aprender a lidar com as emoções, a nomeá-las e a organizá-las internamente, entender que as emoções nos constituem e que não devemos lutar contra elas”, defende Gina Vieira, formadora de professores na rede pública do Distrito Federal.
Mais do que um conteúdo a ser ensinado em sala de aula, a dimensão socioemocional é mais bem aproveitada quando encarada como vivências proporcionadas aos alunos também no contexto escolar. A Literatura, por sua vez, subverte a linguagem, traz metáforas e dá elementos para o leitor elaborar a própria existência.
“A partir do contato com a história de outros personagens, quem está lendo tem elementos para elaborar sua história e suas dores, e consegue, ao mesmo tempo, olhar com distanciamento, porque aquela é a história de um personagem, mas também se aproxima, porque aquela mesma história tem a ver com a sua própria”, observa a educadora.
Para Gina, não há espaço melhor do que a sala de aula para que essas vivências sejam proporcionadas. O professor, no entanto, deve estar atento ao perfil da turma para entender o que é uma demanda a ser atendida.
Literatura para trabalhar as emoções
Leia, a seguir, três dicas das educadoras para conduzir o trabalho de leitura.
1. Não tente ler pelo seu aluno. Exerça a leitura com ele, mas não tente ler para ele, no sentido de brifar a leitura ou assegurar que ele leia a mesma coisa que você está lendo. Embora a leitura de um livro seja consciente, o inconsciente é que é o principal leitor, e cada um vai ressignificar partes do livro e transformar aquilo em experiência. Uma leitura só é significativa quando é ressignificada e transformada em experiências.
2. Ofereça repertório. Deixe que o aluno viva suas próprias experiências. Não é preciso buscar um livro sobre suicídio para trabalhar o tema. Na prática, isso quer dizer que um livro sobre amizade, por exemplo, pode trabalhar várias outras questões, tais como relações familiares e os percalços da adolescência. Nesse momento, ser um bom par de ouvidos para esse aluno pode fazer toda a diferença. Por isso, ouça o que ele tem a dizer sobre a obra que está lendo.
3. Acolha sempre que necessário. Não há aprendizagem sem acolhimento. Se durante a leitura ou discussões sobre a obra a criança chorar, tire ela da sala de aula e leve para um ambiente seguro em que possa vivenciar esse momento sem constrangimento.
Leitura e empatia
Quando tinha 15 anos, a professora Kátia Chiaradia, doutora em Teoria e História Literária pela Unicamp, leu um livro que marcou para sempre a sua vida. Feliz Ano Velho, a obra autobiográfica de Marcelo Rubens Paiva conta a história do escritor, que aos 20 anos, sofreu um acidente que o deixou tetraplégico. A partir de então, o jovem tem a compreensão precoce de que seu futuro “é uma quantidade infinita de incertezas”.
“Esse livro me impactou muito, primeiro porque eu era uma adolescente, tinha uma idade próxima à do escritor na época do acidente, tinha desejos parecidos, como estar com os amigos e viver a vida. A história poderia ser uma ficção, mas quando a li, fiquei mais atenta à vida, senti em muitas passagens a dor do Marcelo e fiquei muito mais sensível às questões da deficiência física”, lembra Kátia.
E não é para menos. Estudos feitos por universidades ao redor do mundo indicam que ler torna as pessoas mais empáticas. Um deles foi conduzido por Keith Oatley, professor de Psicologia da Universidade de Toronto, no Canadá, e especialista na psicologia da ficção, e aponta que, ao investigar a vida de personagens da ficção – suas emoções, motivações e pensamentos –, o leitor pode formar suas próprias ideias e aplicá-las na vida real.
A partir dessa perspectiva, de que forma, então, trabalhar habilidades socioemocionais como a empatia por meio da Literatura pode ajudar crianças e adolescentes a atravessarem processos de luto, perdas e memórias dolorosas da pandemia?
Sobre o uso da Literatura como apoio neste momento, Kátia lembra que não só os alunos perderam pessoas queridas ao longo da pandemia, mas também, os professores. “Eu tenho uma fé imensa na Literatura, tenho uma decisão pessoal de que a Literatura, enquanto objeto de estudo, é um grande apoio. Levo a literatura para todos os contextos da vida”, reflete.
Kátia Chiaradia lembra que outras pesquisas revelam que o cérebro, ao ler textos literários, sente que está, de fato, vivendo aquilo que está lendo, o que, conforme a professora, confirma a hipótese do escritor Robert Louis Stevenson de que “quando lemos literatura, estamos compartilhando, indiretamente, emoções que a história estiver trazendo, e quando fazemos referências ao desenvolvimento da trama, quando nos colocamos no lugar do narrador ou personagem, conseguimos expandir a nossa empatia”, comenta.
Em sua pesquisa, Keith Oatley faz uma comparação entre aprender a pilotar um avião e ler romances. Para aprender a conduzir um avião, é preciso se dedicar, antes, a um simulador de voo, de modo que a literatura seria, então, uma espécie de simuladora da vida.
“É algo como: quanto mais horas a gente tiver [de leitura], com mais tranquilidade será possível trabalhar as emoções e reconhecer situações adversas da vida”, acrescenta Kátia.
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