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Dos escombros da guerra nasce uma escola: a história do projeto liderado por Loris Malaguzzi

A união das famílias e comunidades nos destinos da Educação e a valorização do protagonismo das crianças podem surgir nas circunstâncias mais inesperadas, como mostra Reggio Emilia

“Exatamente como as crianças, tínhamos muito a aprender”, disse Malaguzzi em uma entrevista. Foto: Divulgação/Reggio Children

Como em muitos locais da Europa, a Segunda Guerra Mundial, encerrada em 1945, deixou a cidade de Reggio Emilia, ao norte da Itália, em ruínas. Aos seus moradores restou a tarefa de reerguê-la. Em Villa Cella, a poucos quilômetros de distância, parte da população vislumbrou nessa missão a possibilidade de criar e gerir uma escola para seus filhos que, além de ensinar, também pudesse ter papel na reconstrução da sociedade, da cultura e da política local.

Reunida, a comunidade decidiu trabalhar à noite e aos domingos, voluntariamente, para construí-la, e vender um tanque de guerra, cavalos e caminhões deixados pelos soldados alemães para conseguir recursos. O terreno foi doado por um fazendeiro, a areia retirada do rio e os materiais de construção, das casas bombardeadas.

É assim que começa também a construção da abordagem de Reggio Emilia: pelas mãos de muitas pessoas, sobretudo mulheres, usando suas próprias forças para se erguerem, partindo da aposta na gestão democrática, no diálogo, no trabalho comunitário e, principalmente, no desejo de transformar resquícios de violência e ignorância em um espaço de promoção do conhecimento, da democracia, da cidadania, do bem-estar e de uma sociedade mais igual e solidária.

Esse foi o cenário que Loris Malaguzzi (1920-1994) encontrou ao visitar a cidade para realizar uma reportagem sobre o assunto. À época, trabalhava como jornalista, mas era formado em Pedagogia e atuou como professor de Ensino Fundamental: talvez por isso tenha se envolvido tão profundamente na busca por ajuda para a construção física e pedagógica das escolas.

“Informamos às mães que nós, exatamente como as crianças, tínhamos muito o que aprender. Um pensamento simples e confortador veio em meu auxílio: que as coisas relativas às crianças e para as crianças somente são aprendidas através das próprias crianças. Sabíamos o quanto isso era verdade e, ao mesmo tempo, o quanto tinha de enganoso. Contudo, precisávamos desta asserção e deste princípio orientador; ele deu-nos força e veio a ser uma parte essencial de nosso bom senso coletivo”, contou Malaguzzi em uma entrevista à educadora Lella Gandini.

Nos anos seguintes, foram abertas mais de 60 escolas de Educação Infantil gerenciadas por famílias na província de Reggio Emilia. Em 1963, surgem as primeiras escolas municipais de Reggio e, quatro anos mais tarde, todas as unidades sob comando dos pais passam para a administração do município. A mudança acontece como parte da luta política em toda a Itália por escolas seculares, com fundos públicos, e como um direito de cada uma das crianças de 3 a 6 anos. 

Acompanhando essa transformação, Malaguzzi dá início a um processo de revisão da abordagem, ajustando ideias, selecionando projetos e tentativas e recordando excessos e fraquezas dos processos. É a partir daí que a abordagem começa a se espalhar sob a forma mais parecida com a que conhecemos hoje: aquela em que os professores são pesquisadores e levam a sério a tarefa de documentar, planejar e replanejar, e veem a criança como protagonista de sua aprendizagem, merecedora de escuta, reconhecida como potente em suas múltiplas dimensões, e que aprende por meio de diferentes linguagens e na relação com o outro. 

Hoje, 100 anos após o nascimento de Malaguzzi, a abordagem já está presente em 34 países. Isso não significa, contudo, que ela tenha se disseminado como modelo padronizado.

“Aprende-se na relação, e não no ensino, envolvendo as outras pessoas, mas também com as cidades, as questões sociais, as problemáticas vividas no cotidiano”, analisa Aparecida Bosco Benevenuto, diretora da creche Almerinda Pereira Chaves, em Jundiaí (SP), que se inspira na abordagem. “É dessa forma que é possível ter um pensamento ecologizante, isto é, uma aprendizagem de conteúdos que possam se relacionar com uma dimensão maior e mais humana. Assim, não se trata de um modelo de escola, mas de um princípio. É isso que faz da abordagem de Reggio Emilia inovadora, e permite que ela se desenvolva em outros países, mantendo-se contemporânea aos desafios e potencialidades de cada contexto.”

E para o nosso atual contexto, em outro trecho da entrevista a Gandini, Malaguzzi parece deixar a certeza de que “a preciosa história [de Reggio Emilia] confirma que uma nova experiência educacional pode emergir das circunstâncias mais inesperadas”.

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