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Entrevista: “Pensar o folclore é um movimento de resistência”

Pesquisador Andriolli Costa reivindica o folclore como a verdade tradicional que nos atravessa e chama atenção para a preservação da memória coletiva

Em seu canal do YouTube, o pesquisador discute se um mito que circula na web é fato ou fake. Ilustração: Ana Carolina Oda/Nova Escola

A memória brasileira é muito curta. “Infelizmente, levamos as coisas como se elas sempre fossem estar ali. Desde os saberes tradicionais até as narrativas. Quando meu avô morreu, morreram histórias infindáveis. Quando um indígena morre, muitos saberes morrem com ele.” 

Quem chama atenção é o jornalista e pesquisador do folclore Andriolli Costa, que reivindica o folclore como um saber que atravessa todos os povos, e que vai desde narrativas fantásticas até os mais triviais hábitos do cotidiano. Em sua pesquisa, afirma que o folclore, a ancestralidade e a cosmovisão estão intimamente ligados e falam da mesma coisa: o saber tradicional popular.

“É importante que os jovens entendam que as coisas não vão estar aí pra sempre, que é comum os saberes serem apagados. Eles têm de ser convidados a pensar a sua região, nas feiras, nos pratos típicos, nas festas. Tudo isso ainda está aí, sendo feito do mesmo jeito de antes? Você tem tempo de ouvir os mais velhos e recontar essas histórias para os outros? Isso é folclore. É passar as histórias para a frente, mantê-las vivas. O pensar folclore é um movimento de resistência à morte e ao tempo", defende ele, que nutre o site Colecionador de Sacis e também oferece formações sobre o tema para professores. Na entrevista a seguir, Andriolli fala ainda sobre como aliar a cultura pop na abordagem do folclore e como os mitos podem ser usados para trabalhar temas contemporâneos com os jovens-adultos. Confira: 

Nova Escola Box: O que é folclore?

Andriolli Costa: É preciso entender o folclore enquanto os modos de sentir, pensar, e agir de um povo baseado na tradição. Isso quer dizer que folclore é toda a nossa cultura? Não. É aquilo que é transmitido tradicionalmente e que caracteriza identidade. Folclore não são só mitos e lendas, que são divertidos e a gente adora, mas algo maior, como o jeito que se cumprimenta alguém, o prato típico que se prepara na Semana Santa... tudo isso é folclore. Todos os povos vivenciam o folclore de alguma forma, porque este nos atravessa.

O folclore, então, estrutura coisas que fazem parte do nosso dia a dia?

Exato. Por exemplo, estender e apertar a mão de uma pessoa. Ninguém faz isso porque é um comportamento racional. Se faz isso porque outras pessoas faziam isso, porque isso é costume do seu povo. Do povo ocidental. Os orientais não fazem isso. E isso é tão intrínseco ao seu jeito de estar no mundo que hoje, nestes tempos de pandemia, a gente tem de lutar contra esse impulso. Por quê? Porque é um comportamento tradicional nosso. Típico do afeto, da proximidade, e isso não é da razão, é da tradição.

E como o folclore está ligado à ancestralidade?

Além do movimento negro, que tem problematizado a ancestralidade, o movimento indígena reivindica o não uso do termo folclórico. Eles entendem que folclore é um termo pejorativo, porque nesse entendimento o folclore é uma mentira, é um saber menor, que só se chama de folclore aquilo que é indígena ou de tradição africana, e não para a cultura hegemônica.

É muito comum que as pessoas escolham os termos com os quais elas se identificam mais. A palavra folclore ganhou sentidos muito amplos, e que se elas ofendem as pessoas a gente não usa quando se está dirigindo a elas. Eu não falo em folclore quando eu vou falar com um indígena. Eu uso o termo que ele prefere. Mas, na minha pesquisa e comunicação, sei que o que eu estou falando é folclore. Pensar o folk da origem da palavra folclore, que é o povo, para mim, é muito importante. Porque pensando em povo a gente entende que o que vale não é o indivíduo, mas o coletivo. E acho que essa ideia é muito válida para existirmos nos dias de hoje.

Qual o jeito mais adequado de abordar o folclore na escola?

Falar de folclore só em agosto não vem de agora [dia 22 de agosto é o Dia do Folclore]. É uma coisa que foi sendo construída, e o educador acaba reproduzindo aquilo que ele viveu. Quando fiz curso de formação para professores e bibliotecários, e quando falava e explicava o que é um mito, como se encaixa na nossa história, o que ele significa, eu via despertar ideias imediatamente no rosto da plateia. O que isso mostra? Mostra que quando a gente conhece aquilo que está falando, as ideias vão surgindo espontaneamente.

Há diversas maneiras de abordar, como relacionando com a cultura pop. Tem experiências de um professor que aproveitou a moda do Pokémon GO e fez o Folclore Go, incentivando as crianças a procurarem pela escola fichas de mitos folclóricos. As crianças gostam muito de cosplay, do fantasiar-se de um personagem; eu já vi escola fazendo desfiles de cosplay de fantasias inspiradas em mitos folclóricos. Isso tudo é divertido e envolve. Dá para fazer um trabalho conjunto, pesquisando com a comunidade. Como um livro de receitas da família; isso é super folk. Em Mato Grosso do Sul, um grupo de crianças fez, em 2007, um desfile de mamulengos só com lendas coletadas no bairro. Foi incrível.

E com os adolescentes e adultos?

É legal trazer temas que são do contemporâneo a partir do mito. Uma (história) que sempre falo é da Mula Sem Cabeça. A mula é sem cabeça – na narrativa mais padrão –, porque uma mulher foi amaldiçoada por ter tido uma relação com um padre. Mas nas narrativas mais antigas é possível ver que isso tem a ver com o chamado pater latino. Então, a relação não é só com o padre, é com o pai, o padrinho, o compadre. Eu levo isso pros jovens e pergunto “quem teve relação com o pai, o padrinho, o compadre, não teve uma relação, porque é um abuso de uma figura de autoridade. E mesmo assim é essa mulher que é amaldiçoada. Vocês não acham isso problemático?” Os jovens dizem que sim, e aí discutem.

Eu fecho esse raciocínio dizendo que a gente cria "mula sem cabeça" todos os dias, como nas redes sociais, sempre que se fala que uma mulher sofreu uma violência porque ela estava usando a roupa tal, porque ela mereceu, porque ela fez isso ou aquilo. Isso é amaldiçoar a mula. E os jovens falam sobre isso. Você vê os olhares, isso desperta coisas. O laço dessas histórias está aí. Mas se o mito é machista, então não vamos mais falar do mito? O Brasil é machista e a gente pode usar isso como uma ponte para discutir machismo.  

Como a tecnologia ajuda a falar sobre folclore?

Com a tecnologia é legal saber como elas podem despertar a vontade de saber mais. Os meus companheiros do Ocupa Saci fizeram um jogo de realidade aumentada. Dá para seguir o Saci pelo espaço usando as câmeras do celular, e cada vez que você encontra, ativa com um app, onde aparece uma história diferente de Saci. Com certeza, o aluno  vai se lembrar da experiência e com isso vai também se lembrar da história do Saci. Tem uma Saci nessa atividade que é não binária. As cores dela, da roupa e da carapuça, são as cores da bandeira trans. Isso foi levado para jovens e adultos. Usando a tecnologia é possível abordar histórias que são atuais e que vão impregnar por conta de experiência interativa com a tecnologia.

No seu canal no YouTube, você tem um programa sobre verdades e mentiras nas redes sociais. Como distinguimos o que é folk (folclore) e o que é fake (mentira)?

Sim, no YouTube eu fiz esse formato onde discuto se um mito ou lenda que circula nas redes é folk ou é fake. Existe o hábito de achar que o que é folclórico é mentira, e eu falo justamente o contrário; se é folk é verdadeiro. Infelizmente, como nós temos muito pouco conhecimento do folclore brasileiro, acontece de inventarem uma história. Por exemplo, criam uma origem para o Saci de que ele foi atropelado pela carruagem de Iansã. A pessoa escreveu isso porque quis escrever. É uma ficção. Mas quem não conhece pensa que essa é a origem do Saci e compartilha. “Ué, mas isso não é a origem do folclore?” Sim. Qual a relação do Saci com Iansã? Nenhuma! Mas o Saci tem relação com os orixás. Com Exu, com Ossain e Aroni, e não são gratuitas, elas estão na raiz do Brasil, com os negros escravizados e como eles manifestaram a cultura de resistência; isso tá plasmado no Saci. Não é uma ficção. É a nossa identidade. A história tem de ter um lastro. Não basta ouvir da boca de uma pessoa. Isso não é folclore. Mas se você ouvir da boca de várias pessoas, é folclore. Uma pessoa só falando é só uma história ficcional. É preciso um conjunto de vozes e de pesquisa em fontes confiáveis. A literatura sobre folclore é ampla. 




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