Tudo sobre Folclore: como explorar o potencial da cultura popular o ano todo
Entenda como surgiu a expressão que juntou tudo aquilo que se faz de cultura popular e como tornar o folclore assunto para o ano inteiro
Saci, curupira, mula sem cabeça, caipora, negrinho do pastoreio, todos eles já sabem: chega o mês de agosto e passam a ser convocados por professores de todos os lugares. Ao longo do mês eles vão frequentar as salas de aula, animarão as turmas com suas histórias divertidas, trágicas ou sobrenaturais.
E o auge da movimentação é no dia 22, quando se comemora o Dia Nacional do Folclore.
No entanto, depois desse mês frenético, um fato curioso acontece na maioria das escolas: essas personagens de mil faces e suas histórias maravilhosas mergulharão em um estranho estado de hibernação didática até o mês de agosto do ano seguinte.
Há um motivo para o 22 de agosto ter se tornado um dia dedicado a cada país festejar o seu próprio folclore, como se verá em seguida. Mas ao se pensar que essa definição inclui todas as histórias passadas de geração em geração, muitas delas desde tempos imemoriais, e que também abarca as danças e músicas populares, receitas, adivinhas e trava-línguas, saberes da medicina tradicional, além de mitos e lendas compartilhados por um mesmo povo, fica evidente que o mês de agosto sozinho não pode dar conta de tanta diversidade.
Ao longo dos conteúdos desta edição, você poderá se aprofundar no tema, ampliar o repertório folclórico e descobrir dicas práticas para trabalhar o ano todo.
Por que comemorar o folclore no dia 22 de agosto?
O folclore é inerente ao ser humano, por ser parte da cultura. Mas a palavra criada para expressá-lo tem vida relativamente nova. E, ao contrário da maioria das criações folclóricas, também tem um autor.
O criador da palavra “folklore” foi o inglês William John Thoms, que era o bibliotecário da Câmara dos Lordes, em Londres, em meados do século 19. Dono de vasta cultura, tinha um bom trânsito nas sociedades literárias e se tornou conhecido reunindo histórias populares, tendo publicado alguns coletâneas delas em livros. Também era dono de um antiquário. Ou seja, transitava entre antiguidades e histórias populares, sendo admirador de Jacob Grimm, que, com o irmão Wilhelm, havia sido responsável pela garimpagem de centenas de narrativas orais alemãs que, não fosse o esforço literário da dupla, provavelmente estariam perdidas. Em um grau mais modesto, Thoms fazia o mesmo em seu país.
Um dia, o bibliotecário e escritor bissexto teve uma ideia inspiradora: dar um novo nome para aquele acúmulo de histórias, crenças e tradições populares que tanto o fascinavam, e que eram conhecidas como “antiguidades populares”. Então, escreveu uma carta à revista Athenaeum propondo um neologismo capaz de abarcar os conhecimentos populares e, de certa forma, tirá-los de uma zona nebulosa que abarcava toda manifestação cultural que não fosse considerada “alta” ou “erudita”.
Nesse artigo, hoje histórico e que seria publicado com destaque no dia 22 de agosto de 1846, apareceu a expressão folklore, uma límpida junção de dois termos do idioma inglês bastante usuais: folk (usado para designar principalmente grupos em ambientes rurais, ligados à agricultura e com pouca instrução) e lore (tradição). Era a palavra certa, na hora certa, novinha em folha e na medida para designar um sem-fim de velharias que, como sempre acontece na cultura popular, estão constantemente se renovando, se transmutando em outras e mostrando, em seu conjunto, a vitalidade cultural de um povo ou país.
A criação de Thoms foi bem-sucedida, talvez por expandir o conceito de cultura, tornando-o menos elitista. Curiosamente, a proposta nascia em um periódico londrino voltado à alta cultura. O Athenaeum foi uma revista literária semanal de vida longa (publicada entre 1828 e 1921), sendo considerado um dos mais importantes periódicos da era vitoriana.
Para além do 22 de agosto
Um século e meio depois, o neologismo criado por Thoms já não é novo. E o 22 de agosto como Dia Nacional do Folclore seria incorporado ao calendário escolar de muitos países; no Brasil foi instituído em 1965. Ponto para seu criador, que teria orgulho de seu feito.
Mas o sucesso de sua invenção linguística também pode ser a ameaça, ao designar tão somente um dia para o compartilhamento das lendas, ditos, músicas, brincadeiras e saberes da cultura popular.
“A gente passa o ano inteiro trabalhando literatura e só lembra que existe o folclore no 22 de agosto. É muito reducionista em relação a um mundo tão mágico, um patrimônio imaterial dos mais significativos”, afirma Januária Cristina Alves, autora do Abecedário de Personagens do Folclore Brasileiro (FTD, 2017). “Tudo é subaproveitado. Ficamos recontando a história de Cinderela, e geralmente pela versão da Disney, quando temos aqui, por exemplo, a história da Bicho de Palha, que é uma personagem bem parecida com Cinderela, mas, cá pra nós, bem mais inteligente”, comenta.
Para a escritora e pesquisadora do folclore há um motivo para esse relativo silenciamento: “Os personagens do nosso folclore representam as influências que recebemos dos europeus, dos orientais, dos índios, dos negros, e concentrar tudo isso em um só mês tem a ver com um preconceito em relação às histórias orais. Ainda há o ranço de se pensar nelas como um campo menor. Como se essas histórias estivessem disponíveis para sempre, o que não é verdade. Muitas se perdem”, comenta Januária, que em sua obra descreve 141 personagens, de A a Z – de Zaoris, esta uma curiosíssima lenda gaúcha sobre meninos nascidos na Sexta-feira da Paixão que seriam abençoados pelos anjos, desenvolvendo uma visão especial: eles conseguem identificar ouro aonde quer que ele esteja.
“Só que eles não podem ficar com esse ouro. Precisam dá-lo para alguém”, explica a escritora. Como a maioria dos personagens de seu rigoroso inventário, a preciosa lenda dos Zaoris teve circulação restrita a pequenos grupos, até que uma pesquisadora a levasse a um grande público. E, claro, às escolas.
Folclore revisitado no século 21
O livro de Januária Cristina Alves foi a fonte usada pelo cineasta Carlos Saldanha, o mesmo diretor da animação Rio, na série Cidade Invisível (Netflix, 2021), que faz uma releitura contemporânea de alguns personagens do folclore brasileiro, lançando-os em plena Lapa do Rio de Janeiro, nos dias atuais.
O sucesso da série no país revelou a vitalidade do saci, da cuca, do boto e outros mitos no imaginário dos espectadores contemporâneos. E a boa aceitação mundo afora mostra outra característica das histórias do folclore: o fato de existirem versões mais ou menos semelhantes criadas por sociedades que nunca estiveram em contato prévio, demonstrando o poder dos mitos e arquétipos, como foi evidenciado em vários estudos do psicólogo suíço Carl Gustav Jung.
Januária observa um boom editorial em relação ao tema: “Está havendo um movimento de reconhecimento dessa riqueza, com grande número de publicações surgindo. A série do Carlos Saldanha também contribuiu para essa mudança. É preciso levar essas personagens e histórias para a escola inseridas em um programa de literatura, como um todo”, propõe a escritora.
O jornalista e pesquisador do folclore Andriolli Costa, do blog Colecionador de Sacis, aponta o caminho para os professores escaparem da “prisão” do calendário escolar: “Primeiramente, tendo a consciência de que folclore vai além dos mitos e lendas, que são encantadores, sensibilizam as pessoas, mas são só um aspecto da cultura popular. Quando se entende que o folclore está também nas festas, nos ditos, nas expressões, cantigas, canções e danças, tudo isso pode inspirar o educador a levar o folclore para além do mês de agosto.” E, frisa Andriolli, para além da própria literatura. Para ele, as histórias do folclore também servem para debater questões comportamentais com os alunos. E exemplifica com a lenda da mula sem cabeça.
“É uma história que eu gosto de trabalhar em escolas a partir do 9º ano porque permite abordar a questão do machismo e da culpa que a sociedade coloca sobre a mulher. Porque essa lenda é sobre uma mulher ‘amaldiçoada’ por ter tido relação sexual com um padre. Nos primeiros registros, que aconteceram no início do século 20, encontramos variações nas quais a mulher cometeu incesto com o pai, ou teve relação com o padrinho. Mas quando pensamos em uma mulher que teve uma relação com seu pai, ela supostamente foi abusada por ele e, ainda assim, é transformada em mula como punição. Mesmo na versão com o padre, a mulher é amaldiçoada pelo seu pecado, mas o religioso não. Por que contra o homem não há nenhum tipo de punição?”, pergunta Andriolli em suas palestras.
“Somente levar essa história para os jovens já suscita uma discussão sobre o machismo estrutural no nosso país. Eu costumo dizer que quando se justifica que uma mulher foi atacada porque estava usando uma blusa tal, ou se comportando de um jeito tal, estamos criando as mulas sem cabeça dos dias de hoje”, observa Andriolli Costa.
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